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Incerteza. A palavra - tão detestada por investidores - é a mais repetida quando o exercício é tentar antecipar em toda a sua extensão as verdadeiras consequências do referendo que anuncia o divórcio do Reino Unido com a União Europeia.
Na prática, a saída só deverá estar consumada dentro de dois anos, mas, nos mercados financeiros, o conjunto de expectativas face a potenciais consequências futuras produz efeitos imediatos. Assim foi na sexta-feira com perdas expressivas e recordes negativos numa jornada de nervosismo extremo nos mercados financeiros europeus ou mais ligados à UE. Até Tóquio e Nova Iorque encerraram em perdas significativas porque a saída do Reino Unido da União é percepcionada como um sinal de debilidade do projecto europeu. As economias frágeis da zona euro, Portugal incluído, sofreram mais.
Especialistas de bancos centrais, organizações económicas trabalham sem tréguas este fim-de-semana para melhor avaliar e prevenir os efeitos do Brexit. Na reabertura dos mercados, esta segunda-feira de manhã, surgirá já o primeiro vértice de equilíbrio que poderá conter as perdas ou, ao contrário, as perdas vão aumentar? Esta é a questão literalmente de mais de um milhão de dólares. Muito mais.
“A grande dúvida para amanhã é saber até que ponto a queda que já ocorreu nos mercados é suficiente para absorver o impacto negativo do Brexit. Não há dúvidas de que vai haver esse impacto negativo”, sustenta Álvaro Santos Almeida, no Conversas Cruzadas.
“Também não tenho dúvidas de que no final da próxima semana, e no final do próximo mês, os mercados vão estar mais baixos do que estavam antes da decisão do eleitorado britânico”, prossegue o economista, antigo quadro superior do FMI.
“Saber se a queda de sexta-feira foi suficiente para acomodar toda esta incerteza é a grande questão. É o que os bancos de investimento estão a discutir este fim-de-semana. Segunda-feira veremos”, diz.
Álvaro Almeida: “Vamos ter semanas de grandes oscilações”
“Mas é certo que vamos ter semanas de grande volatilidade, vamos ter semanas de grandes oscilações, por exemplo, na sexta-feira a libra teve a sua maior variação diária de sempre. Variou 10% entre a cotação máxima e o mínimo”, afirma Álvaro Santos Almeida.
“Mesmo que esse tipo de variações não se repita, serão certamente variações substanciais devido à grande incerteza que esta decisão do eleitorado britânico colocou nos mercados”, defende o professor da Universidade do Porto.
Num quadro de incertezas são múltiplas as dúvidas por esclarecer quanto ao impacto do Brexit na economia mundial. São inúmeras as variáveis. Para a contabilidade final vão depender um vasto conjunto de factores com algumas das alíneas a decorrer do tipo de entendimento que venha a ser negociado entre Londres e Bruxelas.
Álvaro Santos Almeida afirma que o regresso do nervosismo ou uma calma aparente na reabertura dos mercados são factores dependentes, em boa parte, do trabalho que está agora mesmo a ser desenvolvido em escritórios pouco amigos da surpresa.
“Os mercados tiveram uma queda brutal – nalguns mercados a maior queda de sempre num dia – em grande parte porque o resultado não era esperado e porque tem implicações que continua a não ser fácil medir em todo o seu alcance. Não era fácil fazê-lo na sexta-feira e continua a não ser fácil hoje”, observa.
“A reacção dos mercados foi de retracção, quedas brutais, porque não sabemos as consequências. Essa incerteza é o factor predominante e a dominar a abertura dos mercados amanhã”, refere.
“Durante este fim-de-semana os grandes bancos de investimento estão reunidos a avaliar essas consequências. Os bancos centrais já anunciaram que estariam disponíveis para apoiar com liquidez, injectando moeda na economia, os bancos que foram, de resto, os principais afectados: as grandes quedas foram na banca”, recorda.
“O que vai acontecer amanhã vai depender um pouco desta reflexão de fim-de-semana e saber até que ponto a grande queda de sexta-feira terá sido suficiente para fazer reflectir nos preços dos activos o impacto negativo – é óbvio que é negativo – da decisão do referendo britânico”, diz Álvaro Santos Almeida.
Silva Peneda: “Tenho muitas dúvidas quanto ao futuro”
As forças libertadas pelo resultado do referendo são imprevisíveis e poderão ter consequências ainda por antecipar no actual modelo de globalização ou até na segurança e defesa da estabilidade europeia. Mas não há aspectos positivos a detectar? Desde logo a constatação de que a Europa não podia continuar como estava?
Responde um conselheiro de Jean Claude Juncker, o europeísta convicto, José da Silva Peneda. “Tenho muita dificuldade em detectar aspectos positivos nesta decisão do eleitorado britânico. Pode, eventualmente, haver um efeito positivo”, concede o antigo eurodeputado.
“A União Europeia tem dois caminhos: ou no sentido da desagregação (começou com a crise grega e agora continua) ou a Europa tem capacidade de inverter esse quadro entrando no caminho da renovação. O bom e o mau situam-se entre estas duas opções”, afirma Silva Peneda.
“Neste momento a tendência é claramente no sentido da desagregação. Já há manifestações no sentido de fazer referendos para a saída na Holanda, Dinamarca, Itália e França. Neste momento há um estilhaço total dos partidos tradicionais. Veja a Espanha e o que pode acontecer com as eleições de hoje”, indica numa referência à segunda ida às urnas no país vizinho desde Dezembro.
“Neste cenário o único país que ainda mantém alguma estabilidade acaba por ser a Alemanha. Neste quadro europeu os factores de desagregação acabam por ser muito fortes e eu tenho muitas dúvidas quanto ao futuro”, diz Silva Peneda.
Álvaro Santos Almeida concorda. “Há problemas que estiveram na base da decisão do eleitorado britânico e que dificilmente se resolvem. Um deles decorre destes nacionalismos bacocos a que o Dr. Silva Peneda aludia e que decorrem de um misto de raiva, com ignorância, com xenofobia”, faz notar o professor de economia.
Silva Peneda não esconde um grau elevado de preocupação face aos indícios projectados pelo resultado do referendo no Reino Unido. “Mesmo que ‘a permanência’ tivesse ganho seria sempre por uma margem tangencial”, sublinha.
“Portanto, o vírus está instalado. O factor que ameaça a paz na Europa é – e estou a medir muito bem as palavras – o nacionalismo. O nacionalismo foi já a causa de duas guerras mundiais, devastadoras na Europa. Jean-Claude Juncker não disse por acaso, recentemente, que ‘os fantasmas da guerra estavam apenas adormecidos”.
“Donde é bom termos consciência de que, se os nacionalismos continuarem a progredir da forma como estão, eu não afasto o cenário de uma guerra a sério na Europa. É bom que haja esta noção clara dos riscos dos nacionalismos exacerbados levados ao limite. Nacionalismos conduzidos por populistas”, alerta o conselheiro do presidente da Comissão Europeia.
Silva Peneda: “Os líderes europeus têm de evitar precipício”
“Ou as instituições europeias são capazes de garantir uma nova forma de vencer o medo e garantir que os europeus podem viver em paz e prosperidade ou está tudo em causa. Há aspectos muito objectivos para a paz e prosperidade começando logo pela União Económica e Monetária”, diz Silva Peneda.
“O relatório dos Cinco Presidentes é claro sobre isso, mas tem um senão: é muito de médio prazo. A criação do orçamento comum é uma solução natural, está escrito, mas para o longo prazo. A criação do tesouro europeu é para muito longo prazo.
Já Álvaro Santos Almeida alerta para os riscos de uma Europa a duas velocidades: “Um dos cenários a não excluir é a tentativa de criar uma Europa a duas velocidades em que um “core”, um núcleo central de países, terá uma evolução de maior integração. Mas não vai ser possível a 27. Nem sequer a 19”, admite o professor de economia.
Mas defende então Silva Peneda que a solução é ‘mais Europa’? “Não sei o que é isso de ‘mais Europa’ ou ‘menos Europa’. Maior integração no que é fundamental? Vamos ser objectivos: enquanto não houver um Orçamento para a zona euro, enquanto não houver um Tesouro para a zona euro, não podemos falar de moeda única para este espaço”, nota.
“De duas uma: ou acaba a moeda única neste espaço ou ficamos pequenos países de fora e há que tirar consequências políticas. Isto vai exacerbar os nacionalismos e fomentar um tipo de espírito que, no limite, pode levar à guerra. Os líderes europeus têm de pensar seriamente se querem evitar o caminho para o precipício”, avisa Silva Peneda.