A Fundação O Século, instituição social criada a partir de uma colónia de férias para crianças desfavorecidas, está a ser investigada pela Polícia Judiciária e pelo Ministério Público (MP). Em causa estão suspeitas de crimes económico-financeiros e abuso de poder.
A instituição foi alvo de buscas na quinta-feira, dia 4, pela Polícia Judiciária. No âmbito das diligências foi apreendida documentação contabilística e financeira e actas consideradas relevantes para o objecto da investigação.
O Ministério Público explicou depois, em comunicado, que na base da investigação estão suspeitas da prática de crimes de peculato e de abuso de poder, de 2012 até aos dias de hoje.
Ao que a Renascença apurou, a investigação está numa fase inicial, mas tem já fortes indícios do uso indevido de dinheiro da Fundação para despesas particulares, assim como da contratação abusiva de familiares daqueles dois dirigentes.
Até ao momento, não foi constituído qualquer arguido, mas tal poderá acontecer em breve.
O jornal i avança esta sexta-feira, citando uma denúncia de trabalhadores, que o presidente da fundação, Emanuel Martins, no cargo há 18 anos, terá aproveitado as suas funções para criar postos de trabalho para sete familiares e para amigos, fazendo uma gestão "danosa e ruinosa".
Os familiares em causa são os filhos de Emanuel Martins, Cláudia Martins, que é secretária do presidente, e Mário Martins, responsável pelo armazém.
Segundo o jornal, a mulher do presidente, Fernanda Martins, é responsável pela equipa de limpeza, além de dois enteados, Carlos Mártires, que é director-geral, e Nuno Mártires, responsável pela manutenção.
Entre os trabalhadores encontram-se ainda duas noras de Emanuel Martins, Carla Teixeira, responsável pela empresa de 'take-away', e Vanessa Fernandes, que cria os menus da fundação.
A Fundação O Século foi alvo de uma auditoria jurídico-financeira em 2016 por parte do Instituto da Segurança Social (ISS), na sequência de denúncias, tendo sido feita uma participação ao Ministério Público, revelou esta sexta-feira o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social.
"Estamos tranquilos"
No dia das buscas, o presidente da Fundação O Século disse à Renascença que o caso pode prejudicar a imagem da instituição e mostrou-se “tranquilo” em relação à investigação.
Emanuel Martins aproveitou para lançar acusações sobre a autarquia da capital. “Fomos espoliados em 4,2 milhões pela Câmara de Lisboa, para além de termos ficado sem a Feira Popular. Espero que isso seja motivo de preocupação de toda a sociedade civil", declarou.
A autarquia negou qualquer dívida à fundação. Em comunicado, explica que chegou um acordo em 2012 e pagou um milhão de euros e cedeu um terreno para cessar os protocolos que existiam com a instituição por causa da Feira Popular.
A câmara adianta que “a petrolífera BP pagou 8 milhões de euros à cabeça à Fundação ‘O Século’, para a exploração do posto de abastecimento”, instalado no terreno cedido, “e esta recebe ainda uma renda anual daquela empresa”.
O acordo alcançado em 2012 teve como objectivo compensar a Fundação O Século pelo encerramento da Feira Popular, cujas receitas eram uma das fontes de financiamento da instituição.
As contas problemáticas da fundação
Segundo o Relatório e Contas da fundação, relativo a 2016, a entidade registou, nesse ano, um prejuízo de 781 mil euros, uma recuperação face a 2015, quando apresentava um resultado negativo superior a um milhão de euros.
A maior parte das receitas desta Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) provém de subsídios e donativos, que, em 2016, contribuíram com 1,30 milhões de euros para as contas da fundação. No ano anterior, o valor era um pouco superior, chegando aos 1,36 milhões de euros.
Do Estado a fundação recebeu entre 1,1 e 1,2 milhões de euros por ano desde 2014, mas sublinha que estes montantes dizem respeito ao pagamento de serviços prestados contratados e não à atribuição de um valor para apoiar actividades.
Deste valor, a maior parte proveio do Instituto da Segurança Social, que foi responsável por mais de 900 mil euros anuais. O restante teve origem no Instituto do Emprego e Formação Profissional e nas autarquias, refere o Relatório e Contas, publicado no site da fundação.
O relatório aponta "outros rendimentos" como a segunda fonte mais importante de encaixe financeiro, tendo em 2016 representado 909 mil euros e em 2015 chegado aos 1,09 milhões de euros.
As vendas e prestações de serviços também são uma fonte de receitas, tendo aumentado de 684 mil euros para 866 mil euros entre 2015 e 2016.
Em termos de custos, o maior peso é constituído pelos gastos com o pessoal, que, em 2016, representaram 2,2 milhões de euros, valor ligeiramente inferior ao de 2015, quando atingia os 2,4 milhões.
Segundo o documento, no final de 2016 trabalhavam para a entidade 131 pessoas, menos 10 pessoas que em 2015, e houve gastos de reestruturação do quadro de pessoal calculados em 187 mil euros.
O Relatório e Contas da Fundação O Século aponta ainda que o passivo da entidade chegava aos 6,1 milhões de euros em 2016, quando no ano anterior era de 4,3 milhões.
A IPSS registou também uma redução da liquidez, passando de 141% em 2015 para 79% em 2016.
O documento refere ainda que o fundo de maneio da fundação sofreu uma forte quebra, passando de 435,3 mil euros em 2015 para 663,1 mil euros negativos em 2016.
As origens de uma fundação que apoia 800 pessoas
A fundação foi criada em 1998 com o objetivo de continuar a obra social da antiga Colónia Balnear Infantil “O Século”, fundada em 1927 por João Pereira da Rosa, o então diretor do jornal “O Século”.
A colónia balnear, que funcionava em São Pedro do Estoril, proporcionava férias a milhares de crianças desfavorecidas, sendo financiada inicialmente com donativos ao jornal e depois pela Feira Popular de Lisboa, criada por João Pereira da Rosa em 1943 e encerrada pela autarquia em 2003.
Nessa altura, "a fundação decidiu apostar no empreendedorismo social para criar novas receitas e passou a disponibilizar alojamentos para turismo a preços acessíveis", criou um serviço de refeições para fora e um serviço de lavandaria e engomadoria.
A fundação alega, na informação disponibilizada no site, que estes novos negócios foram a forma de responder aos problemas financeiros causados pelo "incumprimento abrupto do contrato/protocolo com a Câmara Municipal de Lisboa sobre a Feira Popular de Lisboa".
Actualmente, a fundação apoia crianças, idosos e famílias carenciadas, num total de 800 pessoas.