É em tom de lamento que Itamar Vieira Júnior diz que “o Brasil ainda não é uma democracia igual para todos”. Apesar dos ventos de mudança que a reeleição de Lula da Silva trouxe, o escritor brasileiro diz ao Ensaio Geral, da Renascença, que subsistem, entre outros, problemas sociais.
Numa altura em que está a lançar o seu novo romance, o autor que venceu o prémio LeYa em 2018 considera que o seu país “voltou um pouco à normalidade” depois das eleições e a consequente saída de Jair Bolsonaro da presidência, contudo, Itamar Vieira Júnior espera que “a chama de mudança que grande parte da sociedade carrega e salva, não se apague”.
“A mudança de Governo tira-nos da crise da Democracia, mas ela nos devolve aos nossos problemas históricos que nunca soubemos enfrentar de frente”, aponta o autor. Nesta entrevista depois do lançamento do novo livro, Itamar Vieira Júnior elenca questões como a “desigualdade na sociedade brasileira”, como um dos problemas
“O ranking de vida e valor que foi inaugurado durante a escravidão, em que uma parcela da sociedade é inferior e está na pirâmide social brasileira” diz o escritor tem de ser “desconstruída”. Só assim, refere é possível “erguer um país mais equânime, mais igualitário”.
'Salvar o Fogo', o livro que dá seguimento ao sucesso 'Torto Arado'
"Salvar o Fogo" (ed. D. Quixote), o romance que sucede a "Torto Arado" que se tornou um fenómeno de vendas no Brasil depois de ter ganho em Portugal o Prémio LeYa chega agora ao mercado português e recupera uma das personagens da qual o escritor não se conseguiu despedir no livro anterior.
Mas “Salvar o Fogo” não conta apenas a história dessa personagem. O romance baseia-se na vida de dois irmãos, Luzia e Moisés, órfãos de mãe que vivem na Tapera, nas margens do rio Paraguaçu. Com a obra, o escritor recupera o universo rural sobre o qual gosta de escrever.
Moisés e Luzia “vivem numa região perto da capital de Salvador que é atravessada por uma violência fundiária e pelo domínio da igreja naquelas terras”. Os dois protagonistas “sonham em deixar aquele lugar, mas encontram dificuldades, adversidades e resistências”, explica o autor.
Segundo Itamar Vieira Júnior, “a partir da história da Luzia e do Moisés vamos conhecendo de maneira mais profunda a História do Brasil e de um coletivo. Afinal é um coletivo afro-indígena. Entendemos de facto, o quanto o Brasil ainda está com um pé no passado e está ainda ao serviço de estruturas do passado”, detalha o autor.
Nascido na Bahia, em Salvador, geógrafo de formação, Itamar Vieira Júnior interessa-se por falar sobre o tema da terra, e da propriedade. No seu entender são questões prementes no mundo, e em particular no Brasil do século XXI.
“A desigualdade do Brasil, toda a violência estrutural brasileira está muito fundamentada no acesso à terra, no direito do território que é um direito fundamental de todo e qualquer ser humano”, explica o escritor. Segundo Itamar “a questão é elementar”, daí o seu interesse em trazer o tema para a literatura.
Interrogado sobre o simbolismo do fogo que está no título do novo livro e que marca a história, Itamar Vieira Júnior refere que “conhecemos a história do fogo de uma maneira muito intensa”, normalmente ligado à destruição que provoca. Mas o escritor quer com este livro sublinhar a outra dimensão do fogo.
“A história do mundo não seria a mesma sem o fogo. Quando pensamos no fogo pensamos primeiro em destruição, mas a história humana já mais foi a mesma desde que o homem aprendeu a dominar o fogo, a salvar o fogo. Foi a partir disso que nos aquecemos, aprendemos a dominar o fogo, a cozinhar. O fogo é também sinónimo de muitos sentimentos. Por exemplo, o desejo humano. O ímpeto de criação, muitas vezes chamamos de chama”.
Nas palavras de Itamar Vieira Júnior, o fogo não é “absolutamente bom, mas também não é absolutamente mau. É complexo e guarda ambiguidade”. Esta dimensão bipolar está neste livro “Salvar o Fogo”, onde o “fogo é símbolo de muitas coisas” no romance.