É completamente idiota pensar-se que a Rússia de Putin apaga dados pessoais, quando o que ele apaga são os opositores, diz à Renascença Ana Gomes.
A antiga embaixadora sublinha, contudo, que o ponto mais chocante de todo este caso é o facto de a informação ter sido enviada diretamente pela Camara Municipal de Lisboa ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia.
Nesta entrevista à Renascença, Ana Gomes defende uma investigação criminal, e dos serviços de segurança.
A diplomata sublinha que é preciso perceber se existe, porventura, algum esquema muito grave de transmissão de dados.
Acredita que a embaixada russa em Lisboa chegou mesmo a transmitir os dados dos manifestantes anti-Putin a Moscovo?
Qualquer embaixador tem grande margem de discricionariedade sobre o que manda ou não manda às suas autoridades. Mas num país chamado Rússia, no regime de Putin, eu presumo que o embaixador manda tudo o que tenha e o que não tenha.
De qualquer maneira, neste caso concreto, nem era preciso a embaixada fazer o que quer que fosse. Porque de acordo com os elementos que são públicos, não só a comunicação foi feita à embaixada da Rússia, como foi feita diretamente ao MNE russo, e isso é uma coisa que realmente me chocou. Nem o Ministério dos Negócios Estrangeiros corresponde diretamente com o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo. O MNE corresponde-se com a embaixada da Rússia em Lisboa, ou com a sua própria embaixada em Moscovo. E depois são estas entidades que reportam diretamente com o MNE russo.
Como é que a informação chegou à Rússia?
É isso mesmo que precisa de ser apurado. Sabemos que a informação chegou à Rússia por duas vias: A comunicação feita pela Câmara Municipal de Lisboa à embaixada em Lisboa, e a comunicação feita diretamente pela Câmara Municipal de Lisboa ao MNE russo. E é isso que me põe muito alerta. É necessária uma verdadeira investigação criminal e dos serviços de segurança, porque pode aqui estar em causa um esquema qualquer muito grave.
Há a certeza de que existiu essa comunicação direta entre a Câmara e o MNE russo?
Foi revelado nos mails que os ativistas russos receberam, onde está não só o endereço de email da embaixada em Lisboa como o endereço de email do MNE russo. É isso que a mim me causa a maior das estranhezas e me causa a maior dos incitamentos a que efetivamente se apure, quer do ponto de vista criminal quer do ponto de vista da segurança, se não há aqui uma qualquer rede de transmissão de emissões que obviamente está para além da vontade do Presidente da Câmara, mas que pode ter-se passado. O que também pode explicar porque é que, não obstante haver indicações expressas do atual primeiro-ministro, então como presidente da Câmara de Lisboa, elas não terem sido seguidas, no sentido de ter sido descontinuada essa passagem de informação às embaixadas em Lisboa dos dados pessoais de manifestantes.
Não é ingénuo sugerir que os dados seriam apagados?
Eu diria que é completamente idiota pensar que um regime daqueles apagaria os dados. Quero dizer, eles podem apagá-los, mas já os utilizaram e já os processaram para os efeitos que entenderem.
Estamos a falar de um regime que normalmente não apaga dados pessoais, apaga os opositores. É por isso que se exige uma completa investigação criminal e de segurança, porque estamos a falar de um país que é membro da NATO e que tem responsabilidades na proteção de informações, não só pessoais, mas outras. Que se investigue se há de facto um esquema de infiltração numa entidade com a relevância da Câmara Municipal de Lisboa e eventualmente outras instituições do estado português que se prestem a passar esse tipo de dados, em violação manifesta da lei, ante do regulamento geral de proteção de dados e ainda mais grave depois do regulamento geral de proteção de dados em 2018.