O antigo Presidente da República Ramalho Eanes alerta para a existência de uma “epidemia de corrupção” em Portugal, atribuindo responsabilidades aos partidos políticos.
“Os critérios do saber, da competência e do mérito foram, por vezes, substituídos pela fidelidade partidária", apontou Eanes, esta segunda-feira, durante uma conferência intitulada "Portugal - as crises e o futuro", organizada na Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES), em Lisboa.
Para Ramalho Eanes, é neste ponto que "radica em muito a epidemia da corrupção que grassa na sociedade portuguesa, debilita a confiança social e contribui para a sua degradação em paralelo com um sentido crítico que, felizmente, tem vindo a crescer”.
A “epidemia de corrupção” é alimentada por uma “cultura de complacência”, mas também pelo sistema partidário e por um arco do poder - PS e PSD, mas também ocasionalmente o CDS” - que “colonizou” a administração pública.
"Socializar a política, politizar a sociedade"
Ramalho Eanes defende a necessidade de revisão do sistema eleitoral para resolver a crise da representação política, sem esquecer que a sociedade civil também deve ter maior nível de participação.
"É verdade que esse hiato existe. Isso não é novidade nenhuma. Toda a gente sabe, toda a gente reconhece e é necessário modificar", afirmou Ramalho Eanes, referindo-se à distância entre cidadãos e políticos, antes de citar como exemplo o estudo do antigo primeiro-ministro e atual secretário-geral da ONU, António Guterres, precisamente para reforma da metodologia das eleições, embora escusando-se a especificar soluções concretas para o problema.
"Uma das razões, como referi, será o sistema eleitoral. A outra, talvez não tenhamos feito aquilo que se impunha, que era socializar a política, isso poderia ter sido feito através da escola. E politizar a sociedade, sobretudo a jovem, também através da escola", justificou sobre o aumento da abstenção ou a opção pelos votos brancos e nulos.
Para Ramalho Eanes, "a democracia tem muito menos democracia quanto menor for a participação dos cidadãos na escolha dos seus representantes, porque são os seus representantes que vão desenvolver o trabalho político em proveito da comunidade, do país, de todos e deles mesmos".
Ainda na sua análise durante a conferência, que se estendeu por cerca de duas horas, Ramalho Eanes tinha criticado as "listas fechadas" e o facto de os eleitos se transformarem em "delegados dos partidos" em vez de serem os representantes dos cidadãos, acrescentando que as forças políticas "do arco do poder têm colonizado a administração pública", nas suas várias vertentes, central, local e setor empresarial do Estado, nomeando mesmo a Caixa Geral de Depósitos.
"O problema da corrupção é muito complexo. Em Portugal, tem sido dito - e acho que com alguma razão - que a sociedade civil não é forte e autónoma perante o Estado e devia sê-lo. As empresas deviam ser autónomas perante o Estado. O Estado estabelece as regras, vê se são respeitadas e atua quando não são, mas não estabelece com as empresas determinadas relações que são relativamente perversas. As relações em que a empresa consegue determinadas benesses, favores, isso é um género de corrupção", continuou.
Segundo Ramalho Eanes, "tudo isto se pode modificar e modifica com certeza" quando a sociedade civil for mais "autónoma" e "as empresas não tenham dificuldades burocráticas porque a nossa administração pública responde com prontidão, a justiça não demora quando houver uma fiscalização sobre aquilo que são os atos do parlamento".
"Se olhar a história, há coisas que são muito difíceis. A alteração cultural numa sociedade é uma coisa muito difícil. Enchemos a boca com revoluções culturais, a russa, a chinesa. Quando implodiu o comunismo na União Soviética, o que a gente encontrou foi o homem russo. Não tinha sido criado um Homem novo, tal como prometiam. Não é fácil criar homens novos. Não é fácil modificar a cultura", reconheceu.
Contudo, o antigo Presidente da República destacou que "houve alterações significativas", pois "a sociedade civil era maioritariamente inculta, ignorante" e "hoje é maioritariamente culta, informada, cosmopolita".
"Começa a ter todas as condições para transformar o seu procedimento e relação com o poder político", disse.