​As melhoras, senhor Trump
02-10-2020 - 16:04

Para azar dos americanos, e do mundo, a verdade é que um dos dois homens - Trump ou Biden - irá governar a maior potência mundial durante os próximos quatro anos. No pior caso, do ponto de vista Europeu, os americanos irão reeditar a novela Trump. Um homem que quando lhe pediram para dizer alguma coisa em condenação dos “supremacistas brancos” que já tinham ameaçado atacar na noite eleitoral caso o vencedor não lhes agrade, tudo o que conseguiu balbuciar foi: “recuem e aguardem”.

A Covid não gosta de ser desvalorizada. A cada um que o subestima resolve atacar. Sobretudo os poderosos embirrentos. Vai no terceiro: Donald Trump, 74 anos, Presidente dos Estados Unidos. O homem que entrou em pânico quando soube da doença e, por isso, resolveu negar a sua gravidade.

Antes, fora Bolsonaro, com 65, que lhe chamara “gripezinha” e “resfriadinho”. Pelo meio, Boris Johnson que, nos seus 56, acabou a apanhar um enorme susto e foi parar aos cuidados intensivos, ficando eternamente grato ao enfermeiro português que o salvou.

No caso de Bolsonaro o vírus vingativo não conseguiu travar a loucura. Não aparenta ter dado a mais leve nota de remorsos dos 150 mil de mortos que a irresponsabilidade da gestão do Presidente brasileiro foi corresponsável por provocar ao seu povo.

No britânico, a proximidade com a morte fez algum efeito: hoje o primeiro-ministro já não desvaloriza a doença. Rasga tratados internacionais, mas dá finalmente atenção aos avisos da comunidade científica, em matéria de Covid. E, se é verdade que a sua política continua contestada, já não é por falta de atenção aos riscos da pandemia, mas por excesso de cuidados e normas de contenção.

E com Trump? Ele que anunciou pelo Twitter que sofre da doença, tal como Melania, a mulher, de 50 anos. O que acontecerá (a pouco mais de um mês do final da campanha) resultante de mais esta surpresa? Tudo vai depender da forma como o vírus vier a manifestar-se. Mas uma coisa é certa, a campanha já não voltará a ser como dantes.

Os efeitos fizeram-se sentir logo no primeiro dia em que foi conhecida a notícia. A ida, em campanha, à Flórida foi, imediatamente, cancelada. Trata-se de um dos 14 Estados onde se pode alterar o resultado final. Aquele que já determinou a vitória de um presidente por poucas centenas de votos (durante a batalha Bush vs. Gore que acabou com uma segunda contagem manual a dar a vantagem ao candidato republicano por 537 votos).


Agora, Trump leva ligeira vantagem neste Estado (47,8% contra 46,7%, de acordo com as últimas sondagens). Menos mau, para o Presidente incumbente. Se não fizer campanha ali talvez o resultado se mantenha numa espécie de taco a taco que lhe é favorável.

E se os cancelamentos se seguirem por uma quarentena extensiva a mais de metade da campanha em falta? Isso não o irá prejudicar a prazo? É impossível saber. Tanto mais que Biden leva já vantagem em 11 dos 14 Estados onde a eleição parece estar em jogo devido à propensão para, nestes Estados, o voto não se manter fiel a um ou outro partido, dependendo muito da personalidade dos candidatos.

É verdade que muito já estará decidido na cabeça dos eleitores e, na realidade, para além dos que já votaram por correspondência, a vontade de trocar de preferido não parece muita. A abertura dos eleitores para mudar de ideias numa eleição, crispada como esta, não parece grande.

Isto ficou bastante patente no facto de pouco se terem alterado as sondagens na sequência do último debate eleitoral. Biden partiu com uma vantagem de 6 pontos e depois do “pior debate de sempre na história dos Estados Unidos” reforçou a sua vantagem numa décima.

A classificação do debate não é “exclusiva dos jornais e comentadores estrangeiros”. Por cá, Germano Oliveira não hesitou em afirmar que, em 20 anos a analisar debates, nunca tinha assistido a “nada assim”. Os jornais americanos, e os analistas de todo o mundo, concordaram todos com o nível “incrivelmente baixo” do confronto.

Dos dois lados não se sentiu um mínimo de respeito pelo adversário, nem o mínimo de civismo num confronto de ideias entre os dois, nem um mínimo de elevação na linguagem utilizada, ou de respeito pela inteligência da audiência ou do opositor.

O moderador navegou ao sabor da corrente. Incapaz de impor a menor disciplina num debate que mais parecia entre dois arruaceiros. Trump foi o que sempre é: mal-educado, arrogante, compulsivamente inexato (para não lhe chamar mentiroso como fez, repetidamente, Biden) e o adversário democrata não fez juz à sua idade e experiência política levando a deselegância a ponto de chamar “palhaço” ao Presidente. Se o democrata teve vantagem naquela hora e meia de gritaria, os dois candidatos fizeram uma pequena demonstração de que existe de pior na política seja de que país for.


Para azar dos americanos, e do mundo, a verdade é que um dos dois homens irá governar a maior potência mundial durante os próximos quatro anos. No pior caso, do ponto de vista Europeu, os americanos irão reeditar a novela Trump. Um homem que quando lhe pediram para dizer alguma coisa em condenação da milícia mais conhecida de jovens “supremacistas brancos” que já tinham ameaçado atacar na noite eleitoral caso o vencedor não lhes agrade, tudo o que conseguiu balbuciar, a custo, e sem ponta de convicção foi: “recuem e aguardem”.

Este lado para-racista já seria mau para a renovação da liderança, mas há bastante mais que faz com que a Europa tenha razões para temer a repetição de um mandato dominado pela imprevisibilidade que nalguns casos roça a loucura. Trump rasgou o acordo de Paris (em matéria climática), pretende levar os Estados Unidos de novo para a corrida ao nuclear, considera a Rússia um aliado e faz da perseguição à China uma quase obsessão. Tem dificultado o comércio com a Europa numa guerra de taxas, puxou o tapete a todas as organizações multilaterais da OMS à OMC, à ONU e à própria NATO. Ora avança na Paz no Médio Oriente, ora ameaça lançar o mundo na guerra. E nem dá para compreender a sua instabilidade num caso tão perigoso quanto as espúrias ameaças e alianças com a Coreia do Norte.

Se a Covid vem juntar-se a tudo isto com a América ameaçada de um desaire na gestão da pandemia, e um Presidente “doente” o cenário só pode complicar-se. A vitimização é quase certa. Tal como se torna altamente provável o cancelamento dos dois debates ainda previstos e que Trump já viu que não vai conseguir ganhar com uma perna às costas.

E o que é que isso significa junto dos eleitores? Não se sabe. O próximo seria em Miami no último dia de quarentena e aí as questões seriam respondidas num temível cara a cara com os perguntadores. Regras diferentes, resultados diferentes, mas ainda menos escapatórias.

A evolução da doença também vai contar. Agora chegou a vez de Trump que, nos seus 74 anos, já está entre a população de grande risco. O vírus vingou-se do negacionismo, mas ninguém sabe ao certo o que lhe reservará. Se a doença for grave pode até jogar eleitoralmente a seu favor. Isto, é claro. senão atingir também o adversário que já vai nos 77. No mundo atual, à incerteza que já domina todas as latitudes, parece que pode somar-se sempre mais uma.

Biden dizia com razão que, seja qual for o resultado, esta eleição influenciará a forma como a América será vista pelo mundo “por muito mais tempo”. Isto para não falar dos efeitos que poderá ter uma impugnação dos resultados por parte de Trump, caso venha a perder na noite eleitoral.

O actual Presidente está pronto a contestar o voto por correspondência, banalizado por força da pandemia, e isso adiará o anúncio do resultado final, por dias, semanas ou até meses.

Para já não falar da hipótese absurda de, perante a possibilidade de derrota do Presidente, as “milícias” concretizarem as ameaças e colocarem a América a ferro e fogo. Fazendo das ruas uma batalha campal a pretexto das divisões raciais e da violência policial.

Tudo pesado, talvez o melhor para a Europa seja o rápido restabelecimento do senhor Trump. Desejo-lhe sinceras melhoras. E que ganhe o melhor. Quer dizer: o menos mau, ou mesmo o menos péssimo. Há momentos em que é ainda melhor ser portuguesa.