Papa à Cúria. "Já não estamos na cristandade!"
21-12-2019 - 10:44
 • Aura Miguel , Marta Grosso

Francisco fez este sábado o habitual discurso de Natal à Cúria, durante o qual defendeu a reforma em curso. “A Cúria Romana não é um palácio ou um armário cheio de roupas que se hão de vestir para justificar uma mudança”, afirmou.

Na habitual audiência aos membros da Cúria Romana por ocasião do Natal, o Papa dirigiu-se aos seus mais diretos colaboradores para lhes falar da reforma que está em curso desde o início do Pontificado.

É algo de fundo. Já não é só uma mudança, afirmou Francisco neste sábado de manhã. “Estamos a viver, não simplesmente uma época de mudanças, mas uma mudança de época”, declarou. Por isso, não basta “uma reforma exterior”, mas uma “realizada a partir do próprio centro do homem” – ou seja, “uma conversão antropológica”.

“Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”, disse, citando a famosa frase de Tomasi de Lampedusa na obra “O Leopardo”.

“Muitas vezes acontece viver a mudança limitando-se a envergar um vestido novo e, depois, permanecer como se era antes”, mas não é isso que se pretende, declarou o Papa.

“Encontramo-nos num daqueles momentos em que as mudanças já não são lineares, mas epocais; constituem opções que transformam rapidamente o modo de viver, de se relacionar, de comunicar e elaborar o pensamento, de comunicar entre as gerações humanas e de compreender e viver a fé e a ciência”, disse.

“Somos solicitados a ler os sinais dos tempos com os olhos da fé, para que a orientação desta mudança desperte novas e velhas questões com que é justo e necessário confrontar-se”, defendeu ainda para explicar o porquê da reforma que decidiu implementar na Cúria.

“Precisamos de outros ‘mapas’, outros paradigmas, que nos ajudem a situar novamente os nossos modos de pensar e as nossas atitudes: já não estamos na cristandade!”, afirmou o Papa com veemência.

“Já não somos os únicos que produzem cultura, nem os primeiros nem os mais ouvidos. Por isso precisamos duma mudança de mentalidade pastoral, o que não significa passar para uma pastoral relativista”, acrescentou.

Não significa isto que se deva apagar o passado. “Esta reforma nunca teve a presunção de proceder como se nada tivesse existido antes; pelo contrário, procurou-se valorizar quanto de bom se fez na complexa história da Cúria”, sublinhou o Papa.

“É forçoso valorizar a sua história para construir um futuro que tenha bases sólidas, que tenha raízes e possa projetar-nos para um futuro fecundo. Fazer apelo à memória não significa ancorar-se na autoconservação, mas recordar a vida e a vitalidade dum percurso em desenvolvimento contínuo. A memória não é estática, mas dinâmica. Por sua natureza, implica movimento”, frisou ainda.

“O objetivo da reforma atual é que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autoconservação. A reforma das estruturas, que a conversão pastoral exige, só se pode entender neste sentido: fazer com que todas elas se tornem mais missionárias”, declarou Francisco, recordando “a primeira e mais importante tarefa da Igreja: a evangelização”.

É neste sentido que a próxima Constituição Apostólica, apesar de ainda estar em fase de elaboração, já tem título: ‘Praedicate evangelium’, anunciou.

“Para Deus, ninguém é estrangeiro”

A reforma da Cúria Romana aposta em duas vertentes: comunicação e serviço do desenvolvimento humano integral.

No que respeita à primeira, Francisco frisa a “mudança de época” que vivemos, em que já não basta “usar instrumentos de comunicação, mas de viver numa cultura amplamente digitalizada” com “impactos muito profundos na noção de tempo e espaço, na maneira de comunicar, aprender, obter informações, entrar em relação com os outros”.

A Sé Apostólica tem de saber responder a esta “nova cultura, marcada por fatores de convergência e presença multimédia”, sabendo fazer uma “conversão institucional e pessoal”, de modo a “passar dum trabalho em compartimentos estanques – no melhor dos casos, tinham alguma coordenação – a um trabalho intrinsecamente conexo, em sinergia”.

Já quanto à segunda vertente, do serviço do desenvolvimento humano integral, “concretiza-se no serviço aos mais frágeis e marginalizados, em particular aos migrantes forçados, que representam neste momento um grito no deserto da nossa humanidade”.

“Para Deus, ninguém é ‘estrangeiro’ nem ‘excluído’”, sublinha o Papa, para quem a Igreja “está chamada a despertar consciências adormecidas na indiferença perante a realidade do Mar Mediterrâneo que se tornou para muitos, demasiados, um cemitério”.

Ora, diz Francisco, “a humanidade é a chave com que ler ‘a reforma’. A humanidade chama, interpela e provoca, isto é, chama a sair para fora e não temer a mudança”, destaca.

Medo da mudança? “A Cúria Romana é um corpo vivo”

No Vaticano, perante todos os cardeais, o Papa falou essencialmente de “mudança”. Citando o cardeal Martini numa entrevista dada poucos antes da sua morte, Francisco lembrou: “A Igreja ficou atrasada duzentos anos. Como é possível que não se alvorace? Temos medo? Medo, em vez de coragem? No entanto, a fé é o fundamento da Igreja. A fé, a confiança, a coragem. (...) Só o amor vence o cansaço”.

O Papa recordou que é sempre “mais tranquilizador” retirar-nos “para o passado conhecido” e seguro. “Aqui é necessário advertir contra a tentação de assumir a atitude da rigidez. Esta nasce do medo da mudança e acaba por disseminar estacas e obstáculos pelo terreno do bem comum, tornando-o um campo minado de incomunicabilidade e ódio. Lembremo-nos sempre de que, por trás de qualquer rigidez, jaz um desequilíbrio. A rigidez e o desequilíbrio nutrem-se, mutuamente, num círculo vicioso”, avisou.

Dirigindo-se depois diretamente à Cúria Romana, Francisco afirmou: “A Cúria Romana não é um corpo separado da realidade – embora o risco esteja sempre presente”.

A Cúria “deve ser concebida e vivida no hoje do caminho percorrido pelos homens e as mulheres, na lógica da mudança de época. A Cúria Romana não é um palácio ou um armário cheio de roupas que se hão de vestir para justificar uma mudança. A Cúria Romana é um corpo vivo, e sê-lo-á tanto mais quanto mais viver a integralidade do Evangelho”, sublinhou.

“O Natal é a festa do amor de Deus por nós. O amor divino que inspira, dirige e corrige a mudança e vence o medo humano de deixar o ‘seguro’ para se lançar no ‘mistério’. Feliz Natal para todos!”, terminou o Papa.

“Precisamos de nos deixar renovar pelo sorriso do Menino Jesus”

Depois de falar aos seus mais diretos colaboradores, Francisco encontrou-se com os funcionários do Vaticano para também lhes desejar um feliz Natal.

Nas palavras que lhes dirigiu, o Sumo Pontífice afirmou que “olhar para o Menino Jesus no presépio é sentir que Deus nos sorri. E sorri a todos os pobres da terra, aos que esperam a salvação, que esperam um mundo mais fraterno, onde não haja mais guerras, nem violências, onde cada homem e mulher possa viver na sua dignidade de filho e de filha de Deus”.

“Também aqui, no Vaticano e nos vários departamentos da Santa Sé, precisamos sempre de nos deixar renovar pelo sorriso do Menino Jesus. Deixar que a sua bondade desarmada nos purifique dos desperdícios que tantas vezes se acumulam nos nossos corações e nos impedem de dar o melhor de nós mesmos”, desejou.