Até ao fim de 2022, nem metade do investimento projetado no Ferrovia 2020 tinha sido realizado. João Cunha, especialista em ferrovia, considera que, no início, o plano “não tinha muito mais” além de “comunicação política”.
Segundo a informação disponibilizada pela Infraestruturas de Portugal (IP) nos relatórios de contas, no ano seguinte à conclusão programada do Ferrovia 2020, apenas 994 milhões dos cerca de 2,1 mil milhões de euros tinham sido investidos.
A execução do investimento orçamentado atingiu um máximo de 73% em 2020, quando 137,3 dos 189,1 milhões de euros projetados foram executados. Em 2022, o último ano para o qual há valores definitivos, o investimento subiu para 347,6 milhões de euros – mas tinham sido orçamentados mais de 510 milhões.
Os atrasos do plano significam que a conclusão dos investimentos, originalmente prevista para 2021, tem agora que acontecer até ao final de 2025 – e que o Ferrovia 2020 continua a receber verbas do Orçamento do Estado em 2024.
João Cunha, especialista em planeamento e operação de transportes, é crítico da execução do plano. “Foram prometidos prazos e foram colocadas expectativas cá fora em 2016, quando o plano foi apresentado, e já foi assumido que, na realidade, o plano tinha assunções demasiado otimistas”, contou.
“O Governo diz que há um mínimo de sete anos entre a ideia e a concretização - sendo que a maior parte das coisas que foram apresentadas no Ferrovia 2020 aparentemente estariam no estado de ideia”, aponta o gestor.
"Verdadeiro desastre" para passageiros
O fundador da revista ferroviária Trainspotter não considera esse tempo aceitável, e critica que o Estado não autorize desde logo toda a despesa prevista, obrigando a IP a “mendigar processo a processo, e subprocesso a subprocesso”.
Para os passageiros, os atrasos prolongados nas obras são um “verdadeiro desastre”, avalia João Cunha – principalmente para os que usam a Linha do Norte entre Granja, em Espinho, e Vila Nova de Gaia.
“Os impactos na circulação são tão grandes porque não só há interdições noturnas que afetam muito mais as mercadorias como, durante o dia, a realidade é que se anda muito devagar, aliás, anda-se tão devagar que os comboios rápidos neste momento demoram tanto como em 1981”, garante o gestor.
João Cunha também relembra que “há 30 anos”, quando as regras de contratação pública não eram “tão exigentes”, o Estado dava prioridade concreta ao investimento através de estruturas de missão.
“Estes gabinetes eram formados por pessoas de várias entidades do Estado, que colaboravam e lideravam conjuntamente estes empreendimentos”, facilitando “muito” o processo. Pelo contrário, hoje, “é sempre a IP que lidera o processo e que tem que, no fundo, fazer a ativação da instituição correspondente para lançar este processo”.
“Depois tudo demora muito tempo, depois cada processo é um processo, entra nas filas de cada instituição. Portanto, não há de facto uma priorização e há uma complexidade muito grande”, sublinha.
"Impossível" Linha da Beira Alta abrir em novembro
João Cunha constata que o Ferrovia 2020 é um plano “feito com máxima disrupção para a circulação ferroviária”, com a intenção de “poupar na execução de algumas obras”.
Isso significa, afirma o gestor, que o próprio tráfego ferroviário de mercadorias – cuja beneficiação era o objetivo do programa - está a sofrer uma queda forte. O que é comprovado pelos dados: em 2020, a quota modal da ferrovia no transporte de mercadorias foi de 14,2%. Em 2021, a quota desceu para 10,7%, o valor mais baixo desde 2011, segundo o Eurostat.
A Linha da Beira Alta era uma das vias para o transporte das mercadorias de comboio, mas está encerrada desde abril de 2022, e ainda são precisos trabalhos com recurso a explosivos – o que mostra que os problemas não são só “atraso de materiais”.
“Ainda há, de facto, trabalhos de partir rocha para melhorar o canal ferroviário a ocorrer. Portanto, estamos longe, nesses sítios, de ter uma plataforma de via pronta para assentar carril”, destaca João Cunha. Ou seja, a abertura da linha na data definida pelo ministro João Galamba é "completamente impossível".
A Renascença questionou a Infraestruturas de Portugal acerca dos valores orçamentados e investidos desde 2016 no Ferrovia 2020, assim como os motivos para os atrasos na execução do programa, mas não obteve resposta até à publicação desta notícia.