O presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, o republicano John Boehner, e a líder da minoria democrata na Câmara, Nancy Pelosi, são os responsáveis formais pelo primeiro discurso de um Papa no Congresso norte-americano. Em comunicados separados, ambos assumiram o convite conjunto.
Em entrevista à Renascença, o professor universitário Tiago Moreira de Sá disseca o contexto político em que se produz a visita do Papa.
O especialista em política externa norte-americana e autor de vários livros, entre os quais, “EUA e a democracia portuguesa”, avalia ainda o impacto da deslocação no xadrez partidário interno.
Que ecossistema político vai receber o Papa no Congresso?
Em primeiro lugar, gostava de sublinhar o encontro de Obama com o Papa, na Casa Branca. Estiveram juntos os dois líderes mais notáveis dos tempos actuais. Os que mais conseguem mobilizar para uma agenda mais justa. Os que mais capacidade têm de ler os tempos e de antecipar o futuro.
Quanto ao Congresso, é um ecossistema político, de alguma maneira, único, porque está altamente polarizado. Temos um Congresso polarizado de uma maneira bem diferente do passado.
Antes havia o que se chamava um governo dividido entre republicanos e democratas, mas não um governo ideologicamente dividido. Isso permitia que houvesse um ‘centro’ ideologicamente moderado onde se obtinha boa parte dos acordos nas questões políticas mais relevantes.
Hoje, não temos isso: é um ecossistema sem o centro moderado. As posições estão muito extremadas entre democratas e republicanos e a possibilidade de acordo ao centro é praticamente inexistente.
O Papa é um ‘construtor de pontes’ . O dado reforça a carga simbólica da visita a primeira ao órgão máximo legislativo do país?
O simples facto do Papa ser um homem de diálogo, de consensos, que teve um papel muito importante, por exemplo, no entendimento dos Estados Unidos com Cuba, devia fazer pensar os membros do Congresso norte-americano, embora ache que o Papa, à semelhança do que já aconteceu em Cuba, vá ter sobretudo uma mensagem religiosa e não tanto passível de leitura política.
Este é um Papa que tem como missão chamar novamente pessoas para a Igreja. As suas preocupações de natureza ‘política’ – chame-se assim – são, sobretudo, de política social, de justiça, de distribuição justa da riqueza, de igualdade de oportunidades entre ricos e pobres, de mobilidade social e não tanto de mensagens no sentido de haver necessidade de acordos entre democratas e republicanos no Congresso.
O Papa não abordará assuntos que tenham a ver com a política interna norte-americana ‘stricto sensu’.
“Há mensagem com impacto no Partido Republicano”
Na primeira fila vai estar o republicano e católico John Boehner, presidente da Camara Baixa e principal promotor do convite ao Papa, mas também um dos responsáveis pelo fracasso da reforma migratória aprovada pelo Senado em 2014. Pode haver aqui haver um estabelecer de pontes?
Há aqui várias mensagens importantes com impacto no Partido Republicano. Uma delas tem a ver com a percepção que o ‘establishment’ republicano tem – ao contrário das franjas mais radicais dos vários ‘Tea Partys – de que se o partido quiser voltar a ter a presidência tem de ser capaz de recuperar uma parte importante do eleitorado latino.
Eleitorado que tinha sido importante na eleição de George W. Bush, Bush pai ou Ronald Reagan e que os republicanos perderam. É uma franja do eleitorado muito importante, não só porque os latinos são a maior minoria dos Estados Unidos, já à frente dos afro-americanos, mas também como votaram maioritariamente em bloco, ao contrário do que era habitual, nas duas últimas eleições presidenciais.
Em temas como política económica, imigração, degelo com Cuba, e alterações climáticas – o Partido Republicano não deixa de manifestar desconforto com as posições do Vaticano. A minoria católica nos Estados Unidos, 63 milhões é, ainda assim, pouco influente nas fileiras do Partido Republicano. Vamos ter um aumento dessa influência?
Nos Estados Unidos, as linhas de clivagem eleitoral baseadas em sensibilidade religiosa não são relevantes. Nos anos 60 a divisão existia. Antes da eleição de Kennedy até se dizia que era impensável ter um presidente católico em Washington. Depois acabou por não ser, mas, na altura era improvável. Hoje ninguém pensa que um candidato por ser católico não tenha hipótese de ser eleito presidente.
Aqui o mais é importante para as fileiras republicanas não é tanto o chefe da Igreja Católica, mas a essência da sua mensagem social.
Desse ponto de vista é muito relevante que alguém que é o número um da Câmara dos Representantes – e figura de topo do Partido Republicano – convide o Papa que tem um discurso social e bastante progressista quando outra parte do partido – minoritária, apesar de tudo – tem sido bastante crítica deste Papa considerando-o muito à esquerda.
Há aqui uma mensagem clara a vir do topo do ‘establishment’ do Partido Republicano projectada para as franjas mais radicais. A de que o partido tem de ter um discurso que represente os vários segmentos do eleitorado norte-americano. Um dos grandes problemas do partido é, há já tempos, a perda de representação face a essas parcelas eleitorais.
Um só exemplo: nas últimas eleições o Partido Republicano perdeu em todos os segmentos de rendimento excepto nos agregados familiares, ou indivíduos, que ganham mais de 100 mil dólares por ano.
Nos jardins da Casa Branca, Obama e o Papa não esconderam a sua sintonia em temas que dividem a política norte-americana desde as alterações climáticas, passando pela imigração e Cuba. Subtilmente também não esconderam o que os divide. Por exemplo, o aborto. Mas Obama não manifestou por mais nenhum líder mundial a admiração que tem pelo Papa...
Há uma identificação muito grande, até da maneira de pensar, entre Obama e o Papa Francisco. Viu-se isso num tema tão escaldante como Cuba. O Papa foi factor chave na aproximação entre Estados Unidos e Cuba. Foi facto de ser um Papa latino-americano e tomado por uma pessoa boa que permitiu criar confiança entre duas partes que desconfiavam bastante uma da outra.
Obama tem suavizado o embargo para contornar os entraves da maioria republicana do Congresso, mas a Associated Press avança que os EUA vão abster-se na votação da ONU, em Outubro, para condenar o embargo. Poderá o Papa estar a dar o impulso certo nesse sentido, até pela forma como não se referiu ao embargo agora em Cuba?
A questão é delicada, mas apesar de tudo menor do que se tem dito. Nesta abertura com Cuba Obama usou até ao limite os seus poderes presidenciais, mas o levantamento total do embargo tem de passar pelo Congresso. Teme-se que a maioria republicana possa bloquear a decisão formal.
Na ‘hora h’ acho que, provavelmente, o veto republicano não surgirá. A esmagadora maioria da população norte-americana é a favor do levantamento do embargo. Curiosamente até entre os cubanos a viver na América há uma maioria ligeira a favor do fim do embargo.
“Refugiados: Apelo do Papa é fazer algo simples”
Na Sexta-Feira, o Papa discursa na ONU – crise de refugiados na Europa e alterações climáticas devem ser temas – do ponto de vista simbólico como enquadrar a intervenção com a do Congresso?
Crise de refugiados e alterações climáticas são dois temas que podem ser, de novo, abordados apesar de serem palcos diferentes. Julgo que o Papa será muito fiel às suas ideias de força. Algumas de natureza religiosa. A sua grande missão é a missão de evangelizar.
Mas há também um conjunto de grandes causas internacionais que dizem respeito a toda a gente, entre os quais, refugiados e clima. Há grande convergência de pontos de vista de Obama com o Papa nestas questões.
No imediato, a questão dos refugiados é a mais sensível. Não vai ser fácil resolver. O apelo principal do Papa é fazer algo que devia ser razoavelmente simples. Teve agora um pequeno progresso, mas é muito pouco.
Trata-se do entendimento entre um conjunto de país, alguns com responsabilidades no que está a acontecer, para fazer o que para já é possível. Ou seja, receber aqueles que são fugitivos de guerra, refugiados de guerra.
É nesse sentido que tem ido a preocupação imediata da mensagem do Papa. Claro que o principal problema reside na necessidade de refazer estados e levará décadas a resolver.
Nos Estados Unidos, por excelência, país motor da globalização, do consumismo como vão ser recebidas as mensagens do Papa de respeito à natureza e de mudança de modelo de vida?
Os Estados Unidos até na sua natureza, como dizia Alexis de Tocqueville, são um espaço não-materialista no sentido filosófico do termo. A relação era muito mais espiritual que material. Hoje em dia já não é assim. O que temos visto é que a mensagem tem dividido um pouco os americanos.
De um lado, Obama e o Partido Democrata tem citado muitas vezes o Papa como o exemplo de um líder com as ideias certas e com o coração no lugar certo. Por exemplo, o ícone da televisão americana Jon Stewart fartava-se de citar o Papa no seu programa. Depois, curiosamente à direita no Partido Republicano que era quem costumava citar os Papas anteriores, o que temos visto é uma crítica a este Papa.
Perdão. Não no Partido Republicano, mas em determinados sectores do Partido Republicano, porque um dos grandes erros tem sido confundir a árvore com a floresta. O partido não é constituído só por aqueles sectores minoritários radicais que tem essas posições. O problema é que esses sectores são os mais mediáticos e parece que o Partido Republicano é todo assim.
Mas se há alguém preocupado com estes sectores radicais é o ‘establishment’ do Partido Republicano que não sabe como resolver isto. Portanto, as mensagens têm provocado um impacto crítico nos sectores republicanos mais radicais e, por outro lado, por parte do Partido Democrata uma espécie de adopção das ideias do Papa como sendo também parte da agenda democrata.
Julgo também que hoje em dia não há figura com dimensão política – não estou a dizer que seja uma figura política, o Papa é muito mais que isso – que seja tão inspiradora quanto o Papa Francisco.
Muito do que o Papa tem vindo defender – questões que pareciam resolvidas no mundo ocidental – como a questão da justiça social, justa distribuição da riqueza, da igualdade de oportunidades, da protecção das pessoas na velhice, na doença, no desemprego, não só corresponde ao mundo em que vivemos agora, o ‘novo normal’ de crise e precarização da condição humana nas suas várias dimensões como também quem dantes pretendia representar politicamente este conjunto de ideias está, ou parece, em vias de extinção.
Refiro-me à social-democracia ou socialismo democrático e a democracia cristã. Do ponto de vista político, espero estar enganado – no caso da democracia cristã parece-me negável – mas no caso do socialismo está em vias de extinção.