Mathieu Pinto tem 28 anos. Passou os últimos anos na cadeia. Saiu em liberdade na véspera de se estrear, mais uma vez, no palco da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Apesar de a pena ter acabado, Mathieu quis na mesma integrar o elenco do espetáculo “Estamos todos no mesmo barco”, apresentado esta sexta-feira e sábado, no Auditório 2 da Gulbenkian.
Mathieu é um dos 12 reclusos protagonistas da peça. No palco está um barco estilizado que foi construído numa doca seca, na antiga Tanoaria do Estabelecimento Prisional de Leiria – Jovens (EPL-J), de onde vêm os artistas desta peça. Eles fazem parte do terceiro espetáculo do projeto Pavilhão Mozart/Ópera na Prisão que tem o apoio da Gulbenkian.
A ideia para “Estamos todos no mesmo barco” partiu da vontade de trabalharem “Os Lusíadas” de Camões, explica David Ramy, que coordena do projeto. De origem cubana, este encenador diz que da epopeia partiram para a ideia de “Descobrimentos” e daí foi um salto para aquilo em que a peça se transformou, uma espécie de palco de descoberta das histórias pessoais destes reclusos.
“Sem dúvida um barco é uma prisão, com um espaço reduzido, com comida racionada, sem mulheres, e com rumo incerto”. O paralelismo é feito por David Ramy e sublinhado pelos reclusos. Mathieu Pinto conta-nos que o barco “é uma alusão à prisão. Quem vai para um barco, não tem contacto com ninguém, são sempre as mesmas pessoas todos os dias, as mesmas caras. Na prisão é igual. Depois o sentimento, quando se chega ao fim, à liberdade, num barco é igual. Chega-se a terra firme.” Mathieu chegou hoje a essa liberdade da terra firme, mas lembra que “pelo meio há tempestades”.
Tal como Mathieu Pinto, também Rodrigo Leandro Baeta, de 21 anos, já participou nos outros espetáculos deste projeto artístico. Regressa agora, e explica-nos que na sua personagem representa-se a si próprio. “Tudo o que eu vivi, tudo o que fiz no passado e presente, está na peça”. Rodrigo que assume algum nervosismo antes da estreia na Gulbenkian revela que nesta viagem artística conseguiu “refletir sobre o que quer, os defeitos, as qualidades e os sonhos”.
Rodrigo, que sairá em liberdade em novembro de 2020, considera que esta experiência artística lhe deu “armas”. Este jovem fala de ferramentas como “disciplina, responsabilidade, autoconfiança, fazer o bem, respeito, e ser feliz”. Em entrevista à Renascença, também a diretora do Estabelecimento Prisional de Leiria-Jovens, Joana Patuleia fala desta experiência como um “ensaio para a vida livre”.
O projeto “Ópera na Prisão” que já existe desde 2014, é segundo a responsável pela cadeia “uma experiência que pode contribuir para a futura reintegração social com êxito”. Nos sonhos de reclusos como Rodrigo ou Benedito da Silva Convula, de 22 anos, que participa pela primeira vez neste projeto, estão a representação teatral ou a música.
Quando entrou na prisão, David Ramy admite que achava que ia ensinar algo aos reclusos, mas acabou resignado à ideia de que foi ele quem aprendeu algo sobre a vida com esta experiência. Com o entusiasmo de quem está a poucas horas de estrear um espetáculo, explica-nos que, destes presos, “80 por cento está a rumar à liberdade, como aconteceu com Mathieu, os outros 20 por cento está a guardar ferramentas na mochila”. “Veremos o que farão com elas”, conclui Ramy.
A peça “Estamos todos no mesmo barco” é apresentada publicamente a 24 e 25, às 19h30, no Auditório 2 da Fundação Gulbenkian, no âmbito da iniciativa Isto é Partis!