Na semana em que o Teatro Nacional D.Maria II (TNDM) abre concurso para escolher o seu próximo diretor artístico, o atual diretor estreia uma peça. Pedro Penim apresenta a partir de hoje, no âmbito da Odisseia Nacional, a peça “A Farsa de Inês Pereira”, no Teatro Garcia de Resende, em Évora.
Em entrevista à Renascença, o diretor artístico do TNDM explica que a peça que escreveu a partir do texto de Gil Vicente, tem um olhar de 2023. “Tenho sempre de partir desse pressuposto que estou a falar sobre as questões do meu tempo”, sublinha Penim numa conversa que aconteceu em Sintra, no Olga Cadaval onde se deu a antestreia da peça.
A peça aborda várias temáticas, entre elas o papel da mãe na família. Esta Farsa é aliás, a última peça de uma trilogia que Penim dedica à temática da família. Mas há outros temas. O trabalho é um deles. O diretor artístico fala numa “demanda contemporânea”.
Na peça estamos em 1523, mas olhamos para esta "A Farsa de Inês Pereira" com os olhos de 2023. Como foi este processo de pegar no universo de Gil Vicente, misturar personagens de vários autos e cozinhar esta peça?
Foi para já, uma espécie de celebração desta ideia de uma peça que faz 500 anos e que é uma peça altamente icónica, que muitos de nós já estudamos, e que continua a ser estudada no liceu. Todos nós temos uma ideia desta Inês Pereira, donzela quinhentista presa em casa lutando contra as estruturas sociais da época.
A partir dessa ideia, e de uma leitura da peça original do Gil Vicente, surgiu-me essa possibilidade da reescrita a partir desse olhar 2023. Eu não sei fazer outro, portanto tenho sempre de partir desse pressuposto que estou a falar sobre as questões do meu tempo, ainda que de alguma forma possa haver piscadelas de olho a outros séculos, e neste caso o século XVI.
Foi isso que fez?
Foi encontrar este ângulo de 2023 para olhar para a Inês, e de alguma forma, permitir-lhe uma espécie de vingança contra o próprio Gil Vicente que a encerrou numa ideia da mulher oprimida. De alguma forma, a Inês vinga-se no final da peça de Gil Vicente, mas não deixa de ser uma espécie de fator quase cómico de toda esta ideia da Inês Pereira, que acaba por trair o próprio marido, coisa que aqui não acontece exatamente da mesma maneira, mas de encontrar esta vontade dela não trabalhar, que já está no Gil Vicente e transformá-la numa demanda.
A questão do trabalho é uma das que coloca na peça?
É uma demanda contemporânea. É uma situação, e uma discussão que está muito na ordem do dia. A ideia do que seria essa sociedade pós trabalho, onde as pessoas não precisam de trabalhar dessa forma tão exploradora, e se libertarem desses malefícios do trabalho, assim como ela vê.
Depois, por outro lado, inventar uma outra personagem que não está no Gil Vicente desta forma, que é a personagem da mãe, neste caso interpretada Rita Blanco, e que é um bocadinho o oposto disso. Ela faz a apologia do trabalho, como forma de libertação e transformação social, coisa que a Inês não acredita.
Em que é que a Inês Pereira que criou, acredita?
Acredita numa luta, digamos, mais passiva, e mais de acordo com aquilo que será também uma espécie de confronto geracional que está muito presente nesta peça. E dessas duas ideias de ver a necessidade da transformação social, mas com formas de luta que são antagonistas.
Esta “A Farsa de Inês Pereira” encerra uma trilogia de peças que criou em torno da temática da família. Primeiro foi “Pais e Filhos”, depois a “Casa Portuguesa” e agora esta peça.
Sim. Como acontece em muitos dos meus espetáculos, já antes de ser diretor do Teatro Nacional D. Maria II, há muitos assuntos que vão ficando por explorar em determinados espetáculos e que depois revertem para outros.
Há alguns assuntos que não ficam necessariamente desenvolvidos e que se percebe que há um potencial para outras peças.
Faltava olhar para a figura da mãe?
Faltava. No “Pais e Filhos” era justamente sobre pais e filhos, de uma forma mais generalizada. Na “Casa Portuguesa”, a centralidade era da figura do pai e da ideia da masculinidade. E esta é de facto a figura da mãe, a sua presença e influência. Neste caso, não é à toa que é uma mãe solteira que educa a sua própria filha segundo as suas ideologias.
Esta ideia de trilogia que, obviamente no início não estava na minha cabeça, mas que se foi formando, e esta necessidade de haver este conjunto de peças que falam sobre essa ideia da redefinição da família, ou de pensar sobre a estrutura familiar e, obviamente também a questão do trabalho, constituem esse corpo dramatúrgico que se relaciona. Mas esta é uma peça muito diferente da “Casa Portuguesa” e do “Pais e Filhos”.
Ainda há algum angulo que falte?
Acho que sim. Não sei se vou explorar na próxima peça. Já não terá nada a ver com esta temática, portanto, também é uma espécie de libertação daquilo a que me propus com esta com esta trilogia.
Mas talvez a ideia da abolição que, no fundo, é também uma demanda bastante contemporânea. Quando pensamos em reestruturar a nossa sociedade temos de pensar que estruturas é preciso derrubar. Há outras abolições que, aliás, a Inês menciona. A abolição do dinheiro, a abolição da prisão, a abolição do género que, de alguma forma, no “Pais e Filhos” tinha ficado também mais ou menos explorada, mas que aqui de alguma forma desaparece. Acho que a ideia do confronto com as estruturas também está presente.
O que é ser um Gil Vicente em 2023? Ou seja, tal como Gil Vicente, está a escrever teatro para o seu tempo. O teatro tinha uma função de sátira social no século XVI. Que função tem o teatro em 2023?
Acho que podia responder de duas maneiras. Podia dizer que é exatamente a mesma coisa, porque de facto tem essa função de crítica destas estruturas sociais de que estávamos a falar. O Gil Vicente põe isso de uma forma, brilhantemente escrita, no sentido poético, mas depois na própria temática. Percebe-se que há ali um lado interventivo muito presente.
Depois, obviamente, estamos a falar de cinco séculos de diferença. Portanto, há toda uma outra forma de entender a cena, as personagens, neste caso, por exemplo, os direitos das mulheres, a ideia do feminismo, que é uma coisa que às vezes se discute na escrita do Gil Vicente, mas fala-se sempre com este olhar de agora, virando-nos para trás, o que não é necessariamente pensar que eram essas intenções do autor.
Como é que Gil Vicente olharia para esta farsa de 2023?
Acho, sobretudo, que a peça “A Farsa de Inês Pereira”, de Gil Vicente, sobreviverá a esta e a outras reescritas e versões. Não há essa petulância de pensar que esta peça se vai substituir à “Farsa de Inês Pereira”.
Para mim, e nesta ideia de poder fazer jus ao repertório clássico português, que no fundo também é uma das missões do Teatro Nacional, e como diretor artístico, é bom que assim o ponha também em prática, faz sentido se essas obras dialogarem com presente.
Para isso, não precisam de ser necessariamente reescritas. É bom que se diga. Poderíamos só fazer uma versão de Gil Vicente. Nós fizemos uma leitura da peça, tal e qual, com este mesmo elenco, na Biblioteca da Santa Casa de Misericórdia e há uma enorme modernidade pensar e fazer aquela peça tal e qual como foi escrita.
Não seria necessariamente para mim! Talvez para outros encenadores. Para mim, há sempre esta necessidade de reescrever, porque escrever é uma coisa que eu faço e que e que me interessa. Mas, Inês Pereira, mesmo com esta espécie de vingança, porque ela diz "A farsa é de Inês Pereira, não é? Então eu posso subvertê-la! é quase de lhe dar essa responsabilidade, neste caso, dar a responsabilidade à atriz, à David Costa, de ter esta presença de uma Inês Pereira para o futuro.
E a Odisseia Nacional, como vai andando?
Deixa-me contentíssimo que possamos fazer a estreia em Évora e que o espetáculo possa circular e que, eventualmente, no próximo ano, possa ir a Lisboa.
Tem sido uma ideia de cumprir esse desígnio do Teatro Nacional D. Maria II e da sua missão pública. Este formato de poder apresentar em Évora, de testá-lo em vários formatos e depois apresentá-lo em Lisboa, acho que é uma vantagem de estar muito próximo de populações que normalmente, em circunstâncias, digamos normais, não veriam a estreia do Teatro Nacional.
Não há porque não! Este é um Teatro Nacional, portanto, é natural que a estreia possa acontecer no Garcia de Resende que ainda para mais um dos teatros mais bonito no país. E para mais em Évora, que tem uma ligação muito próxima com o Gil Vicente. Portanto, acho que faz todo sentido!
E como vão as obras da sala do teatro no Rossio, em Lisboa?
Estão a correr bem. Aquilo está bastante destruído, com muitas paredes deitadas abaixo. Dá assim um pouco de dó d'alma, de vez em quando olhar para aquele edifício e perceber que ainda estamos longe de determinar a obra, mas está a correr dentro da normalidade. Acho que vai ficar muito bonito e as pessoas vão gostar de ver. Mas para já, trata-se de um estaleiro. É esse o aspeto com que está.