O presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal garante que, apesar da subida de preços e dos problemas económicos no nosso, "não houve desmotivação dos portugueses para ajudar".
Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia, Pavlo Sadokha afirma, por outro lado, que “teria sido possível evitar muitas vítimas e muita destruição na Ucrânia”, se a Europa tivesse sido "mais dinâmica e mais ativa”.
Ainda assim, reconhece a vontade europeia de ajudar, consubstanciada no facto de a União ter dado à Ucrânia o estatuto de candidato a membro da UE, que, na sua opinião, “mostra que, apesar de várias posições sobre os efeitos económicos negativos desta guerra, no fim todos chegaram a um acordo”.
Pavlo Sadokha adianta que o escândalo em Setúbal, com uma associação pró-russa que recolheu dados pessoais de refugiados ucranianos em Portugal, não é um exclusivo do nosso país.
O presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal vê na Conferência para a Reconstrução da Ucrânia, realizada no início da semana passada, na Suíça, um sinal de esperança e encontra nas tentativas de diálogo do Papa Francisco “mais um caminho para que não morram mais pessoas”, embora admita que “é difícil para os ucranianos ver o Papa ir falar com Putin, que para eles é o mal absoluto”.
Num contexto como o atual, em que se intensifica a ofensiva russa na Ucrânia, não é prematuro falar-se de reconstrução? Ou para quem sofre os horrores da guerra este é mais um sinal de esperança solidária?
Exato. Nós sabemos através de algumas investigações que os ucranianos na sua maioria acreditam que vão vencer esta guerra, porque não foram eles que começaram esta guerra. E o facto de lutarem pela sua vida, independência e direito a viver, dá-lhes aquela força de saber que esta guerra tem que ser vencida. Só assim os ucranianos sobrevivem.
E outro facto importante é o de verificarmos que - nesta segunda fase da guerra que realmente começou em 2014 - todos os povos e países democráticos e livres, todos os dias continuam a ajudar os ucranianos e a dar-lhes razão para lutar, para acreditar que não só vão vencer esta guerra, como vão conseguir com pouco tempo reconstruir o país.
E ter o seu país de volta?
Exato. E isso vemos pelos refugiados ucranianos que estão cá em Portugal e com quem estamos todos os dias na tentativa de ajudar à sua integração e para resolver muitos assuntos. E a maioria está convencida que dias melhores virão.
Na mensagem enviada à Conferência de Lugano, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, alertou para a possibilidade de 90% dos ucranianos correrem o risco de cair na pobreza. Até por causa disso, a reconstrução tem de começar já agora?
Claro que sim, porque o país quase parou com esta guerra. Nós sabemos que não há nenhuma cidade na Ucrânia que não corre risco de ser atacada pelos mísseis, e pelos aviões russos. De vez em quando até há cidades que estão mais longe da linha de frente - por exemplo, a minha cidade de Lviv - e já foram várias vezes atacadas pelos mísseis.
Todos os dias falo com os meus familiares lá na Ucrânia, com os meus amigos, com membros de outras associações com quem temos parcerias, e eles dizem que na realidade a situação é grave.
E têm consciência deste risco enorme de pobreza?
Eu acho que nós todos, os ucranianos, toda a nossa diáspora, está a ajudar para amparar os ucranianos para não caírem na pobreza. Mas que o risco existe, sim, não tenhamos dúvidas.
O país está a enfrentar o segundo maior império militar do mundo. Império que não está só a fazer a guerra, mas também está a roubar cereais, está a roubar bens e a destruir a economia. Porque o que está a acontecer nós chamamos de genocídio. Claro que vai ser avaliado ainda pelos políticos e historiadores e juristas, a definição certa do que está a acontecer cabe a eles, mas esta é a realidade: Putin está a destruir a Ucrânia. Não se trata apenas de ocupar e tomar o controle sobre o país, está a destruí-lo, isso é evidente.
A Comissão Europeia criou uma plataforma especial para a reconstrução do seu país. Muitas vezes criticada por não ter uma estratégia delineada, na questão da guerra temos mesmo uma UE a falar a uma só voz?
O falar a uma só voz seria uma solução exemplar para esta situação, mas isso, reconheço, é difícil porque a União Europeia é constituída por 27 países em que cada um tem a sua política e a sua posição. Mas, para já temos uma unidade de todos para ajudar a Ucrânia.
E veja-se que a União Europeia deu à Ucrânia o estatuto de candidato a membro da União Europeia. Mostra que, apesar de várias posições sobre os efeitos económicos negativos por causa desta guerra, no fim todos os países chegaram a um acordo de que é necessário parar esta guerra ajudando a Ucrânia.
Essa aproximação ao Ocidente acaba por ser vista como uma espécie de prémio para tantos sacrifícios. Ou seja, efetivamente muitos destes problemas surgiram porque houve uma opção de fundo de dizer: “nós queremos virar-nos para o Ocidente?”
Este não é um prémio para a Ucrânia...
Será mais um reconhecimento?
O que está a acontecer não é só o facto de a Ucrânia ser vítima de um império, de um ditador, de um fascista que quer expandir o seu império.
Eu acho que cada país europeu está a defender agora a sua independência, porque no fundo o que nós vivemos antes de 24 de fevereiro, em que havia um ditador que chantageava a União Europeia, isso mudou.
E agora vamos ver como é que a União Europeia vai enfrentar uma força que ameaça com a guerra nuclear. Acreditamos que a União Europeia vai construir uma nova Europa, um novo mundo, com justiça, com direitos e valores e lutando diariamente por estes valores.
Como é que avalia a solidariedade internacional? E a portuguesa em particular? É aquela que os ucranianos precisam nesta altura?
Eu acho que para os ucranianos continua a ser dado muito, muito apoio. Em termos estratégicos eu acho sinceramente que, se a Europa se tivesse mexido mais depressa, e tivesse tomado uma decisão com mais dinâmica, teria sido possível não se chegar a tantas vítimas e tanta destruição na Ucrânia. Porque os políticos ucranianos diziam que Putin já não quer negociar. Só parando esta guerra é que podemos pôr Putin no seu lugar.
Mas corre-se o risco, por exemplo, como a Cáritas Internacional já alertou, de esmorecer a solidariedade internacional face ao prolongar do conflito?
Isso pode acontecer. Claro que as pessoas se cansam. E os próprios ucranianos já se cansaram desta guerra que vivem há já quase cinco meses. Pensam todos os dias: será que hoje vou sobreviver ou não?
As pessoas já não querem lutar, nem sabem se podem ou não fugir. E isso é o que Putin quer; que os ucranianos fujam e que percam a motivação para continuar a lutar. E claro que pode acontecer que os países percam a motivação de continuar a ajudar, até porque a situação se agudizou com os problemas económicos associados à guerra. Mas eu estou muito satisfeito e quero agradecer muito aos portugueses porque mesmo com esta subida de preços de gasóleo e gasolina, e com os problemas económicos que agora aparecem em Portugal, não houve desmotivação dos portugueses em ajudar.
Para já não há então esse esmorecer solidário?
Exato.
O movimento de refugiados continua e, nos últimos dias, a ofensiva das tropas de Putin na região do Donbass obrigou a um novo movimento maciço de pessoas. Em Portugal estão ultrapassados os problemas relacionados com o acolhimento?
Eu acho que o processo de acolhimento em Portugal está a correr bem. Apesar de alguns problemas óbvios, porque ninguém estava preparado para enfrentar tal situação. Mas eu acho que está a correr bem, porque pelos nossos contatos e pelo nosso dia a dia no trabalho com refugiados, estamos a ver que, pelo menos eles sentem-se em Portugal seguros e sabem que vão ter apoio.
Mesmo aqueles que vieram para Setúbal?
Isso é outra questão. É uma questão mais complicada e acho que tem que ser a segurança de Portugal que tem que ver essa situação. Nós estamos perante uma situação que não é apenas de guerra física. Na Ucrânia nós estamos a enfrentar uma estratégia híbrida da Federação Russa que está a acontecer em vários países.
O caso de Setúbal não é caso único. Nem, nem em Portugal. Há pouco tempo estivemos numa reunião em Bruxelas com os líderes das comunidades da Europa, dos Estados Unidos, do Canadá e de Inglaterra e eles alertaram também para factos muito parecidos com os que aconteceram em Setúbal.
Mas é modus operandi, uma maneira de fazer por parte das autoridades russas?
Sim, isso não é novo. Eles só abriram os livros de instruções de KGB e da União Soviética e continuaram com a mesma estratégia.
No Algarve, a associação local receava que o verão pudesse trazer despejos de refugiados porque os proprietários das habitações estavam apostados em alugar as casas a turistas. Teme que isso possa acontecer?
Claro que sim, tememos que possa acontecer, mas até não temos notícia disso. Há alguns casos particulares, mas temos conseguido resolver, sempre. Vamos conseguir, todos juntos, como sociedade, a comunidade ucraniana, o Governo, ultrapassar tudo isso.
O amadorismo e impulso inicial dos portugueses que foram à Ucrânia buscar pessoas que depois não podiam acolher está ultrapassado? Este cenário de solidariedade por impulso vai sendo deixado para trás, aos poucos, com mais noção do que é preciso fazer a longo prazo?
Eu vivo em Portugal há 21 anos, a minha esposa é portuguesa, conheço a realidade. Claro que o impulso está a diminuir, é uma questão da física, na realidade, mas vivendo cá há tantos anos, conhecendo a cultura, os portugueses, sei que eles não abandonam as pessoas. Aproveito para agradecer a cada português por esta força humana, na ajuda aos que ficaram numa situação tão trágica.
Muitos que chegam manifestam, de imediato, a vontade de regressar à Ucrânia. Tem havido esse movimento de regresso ao país? Ou, com as novas investidas das tropas russas, essa situação está parada?
Não, não está parada. Está a aumentar e tentamos perceber qual é a razão. O principal motivo não é que estes ucranianos não se consigam realizar ou adaptar-se a Portugal, mas o facto de os homens – maridos, familiares – terem ficado lá. O maior problema é viver esta situação quando, todos os dias, se acorda e telefona para saber se o marido está vivo, está bem.
Até porque a reunificação familiar aqui, neste momento, é impossível…
Exato. E os ucranianos são patriotas, isso é óbvio na forma como estão a defender a sua vida. Temos muitos exemplos em que os portugueses propõem uma ajuda e os ucranianos – não é que não queiram receber, até porque precisam – dizem: “vou tentar resolver sozinho”. Não querem parecer abusivos, querem regressar ao seu país, construí-lo, ter o direito de reconstruir o seu país, na sua terra.
A comunidade internacional tem feito tudo na procura de um caminho para a paz?
Se tivesse feito tudo, não haveria tantos mortos, tantas tragédias, não haveria Bucha, Irpin, com tanto terror que vivemos. Não foram só os ucranianos, estas imagens passaram em todo o mundo e sei que todas as pessoas civilizadas, com bom coração, não conseguiram ficar tranquilas depois destas imagens. Acho que é preciso perceber que Putin já não vai parar. Quanto mais depressa todos os políticos, dos países que querem resolver a situação, perceberem isto, menos vítimas haverá na Ucrânia, menos destruição, menos efeitos secundários.
O Papa Francisco faz questão de, nas suas intervenções, ter sempre uma palavra para a situação que se vive na Ucrânia. E nos últimos dias revelou que quer visitar Moscovo e Kiev depois da sua viagem ao Canadá. A diplomacia de Francisco pode ser decisiva?
Eu sou cristão, católico, acredito que Deus saberá. Sinceramente, é difícil para os ucranianos, que já perderam os seus familiares, ver o Papa ir falar com Putin, que para eles é o mal absoluto. Não percebem como isso pode ajudar e sentem-se, eu sei, até um pouco abandonados, neste sentido. Mas o nosso mundo é mais complexo e as tentativas de diálogo são mais um caminho para que não morram mais pessoas. Vamos acreditar nisso.
O Papa mantém constantemente a atenção sobre a situação, até porque se corre o risco de, com o prolongar do conflito, se banalizar a informação à volta dele. Este esforço de manter a questão na primeira linha da atualidade é importante?
O Papa é muito importante e já o ouvíamos antes de 24 de fevereiro. Desde 2014 temos essa atenção.
Nas mensagens ‘Urbi et Orbi’, da Páscoa e do Natal, tem falado sempre da crise no leste da Ucrânia.
Quando ele esteve cá em Portugal, em 2017, rezou-se pela Ucrânia, no Santuário de Fátima. Mas o que Deus pede, às vezes as pessoas não fazem, mas o papel do Papa é muito importante, na busca de soluções e de paz, nesta situação.
Claro que os ucranianos não querem – e já o disseram várias vezes, tanto os políticos como a sociedade – aceitar ceder as terras já ocupadas pela Federação Russa.
A solução para os ucranianos é a retirada das tropas russas e voltar às fronteiras de 1991, quando a Ucrânia se tornou independente, mas ninguém quer ver mais vítimas, mais destruição. É um peso não só para os ucranianos, mas também para o Papa.
Às vezes, há conflitos que não se resolvem em dias ou meses, duram anos. O que Putin disse, no início da invasão, a 24 de fevereiro, o que ele quer, como nós percebemos as suas palavras, é que os ucranianos desapareçam, como tal – a sua cultura, a sua língua, o seu Governo, a sua democracia. Tudo. Essas terras têm de estar abandonadas e até vemos o caso de Setúbal, em que os ucranianos são perseguidos nos outros países. Infelizmente, esta é a realidade, mas temos de sobreviver como nação, como povo.
Temos a ajuda do Papa para manter a nossa força espiritual, ultrapassar esta tragédia e vencer. Vencer não só como um país, que ganha a guerra, vencer como pessoas.