“Um homem bom”. É assim que o mais recente filme que narra a história de Aristides de Sousa Mendes descreve o diplomata português. O documentário “Aristides Sousa Mendes: Um Homem Bom” tem uma parte ficcionada, é realizado por Victor Lopes, um argentino com nacionalidade portuguesa, e foi filmado em Buenos Aires.
Na tela conta-se a história de sete dias na vida do cônsul português na cidade francesa de Bordéus que, entre 16 e 23 de Junho de 1940, assinou cerca de 30 mil vistos que permitiram a muitas famílias de origem judia abandonar França tomada pelos nazis. Os salvo-condutos abriram a porta à entrada em Portugal e, para muitos, a viagem até ao outro lado do Atlântico, para longe do Holocausto.
Um momento em que “que lhe pesou mais a consciência que o sentido do dever”, frisa o realizador, em entrevista à Renascença. Mais uma homenagem do realizador, depois de em Junho 2015 ter proposto a colocação de uma placa com o nome de Aristides Sousa Mendes na Praça de Portugal, no bairro Belgrano da capital argentina.
Victor Lopes diz que Sousa Mendes “não era um super-herói”, apenas reagiu ao contrário do que faria um burocrata. E deixa o alerta: precisamos de mais pessoas como Aristides de Sousa Mendes nos gabinetes, que tentem salvar pessoas – como os muitos migrantes que chegam à Europa - para lá da burocracia.
De onde surgiu a ideia de filmar um documentário sobre Aristides de Sousa Mendes?
Considero que Aristides de Sousa Mendes é um dos portugueses mais importantes, de entre aqueles que ajudaram a salvar vidas no Holocausto. E aqui na Argentina é uma personagem praticamente desconhecida. Em 2015, apresentei um projecto à legislatura da cidade de Buenos Aires que foi aprovado pelos deputados municipais e foi colocada uma placa numa praça com o seu nome. Foi uma homenagem a este grande português que integra, com outros três, a lista de "Justos entre as Nações", que salvaram vidas durante a invasão nazi, um pouco por toda a Europa. Embora creia que alguns sectores conservadores da sociedade portuguesa não tenham compreendido a missão de Sousa Mendes de salvar vidas, este meu trabalho vai permitir às gerações futuras conhecerem este grande português.
O Victor também tem nacionalidade portuguesa.
Os meus pais saíram do Algarve e chegaram à Argentina nos anos 50. São naturais de São Brás de Alportel, no sul de Portugal. E eu, sempre que posso, vou a Portugal. E tenho grandes amigos em Portugal. É um país que amo e que sinto como meu. Cada vez que vou a Portugal, sou muito bem tratado.
Teve apoio português para financiar o filme?
Não tive apoio de nenhuma instituição portuguesa, também porque não o pedi. Tive um problema de apoio, mas foi quando pedi ao embaixador de Portugal na Argentina, Henrique Silveira Borges, que se negou a apoiar o projecto. Não conheço os motivos pelos quais não quis apoiar esta homenagem a Sousa Mendes. Nunca me responderam aos e-mails. Por outro lado, recebi o apoio das embaixadas de Israel, Alemanha e França. E também da AMIA (Asociación Mutual Israelita Argentina) e outras instituições. O neto de Sousa Mendes e a Fundação Sousa Mendes, sediada nos Estados Unidos. Mas a Embaixada de Portugal na Argentina, e em especial, o embaixador Henrique Silveira Borges, não quiserem apoiar o projecto.
Sabe a que deveu essa falta de apoio?
Não sei ao certo. O que sei, porque tive pessoas que me escreveram a partir de Portugal, é que há uma corrente de direita que desvaloriza a actividade de Aristides de Sousa Mendes à frente do Consulado de Bordéus a salvar pessoas do Holocausto.
Deve-se a uma questão ideológica?
Suponho que sim, mas nunca ninguém me explicou nada mais do que isto. Há sobretudo muito silêncio [sobre o legado de Aristides de Sousa Mendes], algo que continua a ser incompreensível para mim. Espero que as instituições portuguesas um dia me expliquem o que pensam sobre Aristides de Sousa Mendes.
Voltando ao filme propriamente dito. Podemos dizer que retrata um momento em particular da vida do cônsul português?
Fazemos um pequeno relato desde o seu nascimento e também dos dados mais precisos e básicos da sua carreira diplomática. Mas colocamos muita ênfase no momento em que lhe pesa mais a consciência que o sentido do dever. Como sabemos, havia uma circular, a número 14, difundida por Salazar, primeiro-ministro de Portugal, que proibia explicitamente dar vistos aos perseguidos. A ênfase está nesse momento, em que a consciência foi mais importante que o dever. Muitas vezes, nas nossas profissões vivemos esse conflito. Eu penso que Aristides de Sousa Mendes era um homem como qualquer outro, não era um super-herói. Simplesmente reagiu ao contrário do que fazem os burocratas nestes casos. A sua consciência foi mais importante do que o seu dever. O filme baseia-se principalmente nos sete dias em que passou os vistos, nessa corrida contra a morte de um homem que fez tudo sabendo que quando voltasse a Portugal ia ser considerado um traidor.
Como foi o processo de escolha dos actores?
Começou através de uma convocatória aberta, democrática. Ou seja, não me foram recomendados actores nem actrizes. Foi através de um casting público e para o qual se apresentaram mais de 120 actrizes de toda a Argentina. Melissa Zwanck acabou para ser a actriz escolhida, a personagem que faz o relato toda a história de Aristides de Sousa Mendes.
O filme é essencialmente um documentário, mas tem uma parte de ficção, sobre a qual não vou adiantar muito e que espero que seja do agrado do público. Sobre o processo de escolha dos actores, foi feito através de casting. Escolhemos o actor
Nahuel Padrevecchi para encarnar a figura de Sousa Mendes e Melissa Zwanck - uma actriz muito jovem, de 20 anos, que vai ser uma grande actriz argentina - para relatar a história. Uma história de um grande português, do qual muitos sentem orgulho e eu também.
É um filme documental com uma parte ficcionada?
Exactamente. O filme tem aproximadamente trinta minutos e no fim, há uma parte de ficção. É quando Aristides Sousa Mendes percorre a cidade de Buenos Aires.
No processo de pesquisa para realizar o filme, entrou em contracto com a família do cônsul português?
Tenho uma grande amizade e um grande carinho pelo neto de Sousa Mendes que vive em Cabanas de Viriato [no concelho de Viseu], António Moncada Sousa Mendes, que é um grande difusor da obra do avô. E conto com o apoio dele, com o suporte, com a amizade deste homem que não se cansa de difundir, em Portugal e no resto do mundo, o que foi a tarefa humanitária de Aristides de Sousa Mendes.
Ainda em relação à preparação do filme. Teve acesso à informação junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros acerca de como funcionava a diplomacia portuguesa na época?
Tive muita dificuldade em aceder a essa informação. Tanto os contactos que fiz com o Instituto Camões, como com o Ministério dos Negócios Estrangeiros, não tiveram resposta. Recorri sobretudo à literatura de diferentes autores portugueses, portugueses e não só, que estudaram este tema e foi destas leituras que extraí os dados. Na Argentina, Aristides de Sousa Mendes é um personagem praticamente desconhecido.
Esse desconhecimento também lhe serviu de motivação?
O meu trabalho é apenas um grão de areia, que eu espero que apele à consciência colectiva. Fui também muito apoiado e ajudado por João Correa, um dos realizadores do filme [de ficção] "O Cônsul de Bordéus (2011)" a par com Francisco Manso. Para além de ter visto o filme dele, que tenho em casa, mais de cem vezes, João Correa também me deu a conhecer alguns dados sobre a vida de Aristides de Sousa Mendes. Tive muito material disponível que me permitiu levar o trabalho por diante.
A estreia do documentário já tem data prevista?
Neste momento estamos a trabalhar para apresentar o filme no fim deste ano, em diferentes festivais de documentários históricos. Penso que no ano que vem iremos a Portugal, por Espanha e em diferentes locais e regiões na Europa, para difundir esta grande personalidade. Para mim, é alguém que não deve cair no esquecimento. Sobretudo, desde que começaram a restaurar a casa natal de Aristides de Sousa Mendes para construir um museu. O que quero dizer, é que a figura de Aristides de Sousa Mendes, ao contrário do que algumas pessoas pretendem, cada vez tem maior dimensão. Em especial, quando na Europa e no resto do mundo, temos problemas migratórios gravíssimos. Parece-me que hoje em dia nos fazem falta mais personalidades como Aristides de Sousa Mendes, a tentar salvar pessoas.
Actualmente é mais difícil encontrar pessoas com um perfil semelhante ao de Sousa Mendes?
Sim e fazem falta nos gabinetes das instituições oficiais. Precisamos de menos burocratas, menos fascistas e mais democratas ao serviço dos seres humanos. A minha grande pergunta é esta: que fariam os actuais embaixadores de Portugal e de outros países que se encontram em funções um pouco por todo o mundo se colocados face a circunstâncias parecidas? Que fariam? Salvariam pessoas ou seriam indiferentes? Será que hoje atribuiriam os vistos? É esta pergunta que quero colocar ao mundo.