O Hospital de São João está a preparar-se para uma terceira vaga de Covid-19 já em janeiro, revela o presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar Universitário do Porto.
Em entrevista na "Hora da Verdade", da Renascença e do "Público, Fernando Araújo revela também que está "muito preocupoado" com os doentes não-Covid que não estão a chegar ao hospital.
Diz-se ainda insatisfeito com os prémios aos profissionais de saúde e defende que a pandemia de Covid-19 "trouxe a oportunidade de o SNS se reinventar".
Já têm tudo preparado para começar a vacinar os profissionais de saúde no domingo? Quantos serão vacinados de imediato e quanto tempo demorará a operação?
A última informação que temos é que o hospital de São João disporá de cerca de 2.280 doses. Estamos a preparar uma operação de elevada complexidade para tentar que no domingo, se as doses chegarem logo ao início da manhã, podermos vacinar no mesmo dia cerca de 2 mil profissionais. A estrutura está a ser montada. E três semanas depois faremos a segunda toma.
Há muitos profissionais a dizer que não querem ser vacinados?
Ao contrário do que era expectável, a maior parte está a dizer que sim. Nos primeiros cálculos, diria que mais de 90%, 95% querem fazer a vacina.
Quando terminará esta primeira fase da operação?
A ideia é tentar vacinar todos no domingo. Depois de aberto o contentor [em que vêm as doses], o prazo de validade é muito curto e durante a semana temos as actividades normais, seria disruptivo conciliá-las com a vacinação.
A operação demorará cerca de 10 horas, estamos a falar de 20 a 30 postos, vamos transformar todo o sector de consultas externas numa vasta área de vacinação.
As farmácias deviam ser envolvidas neste processo? É um erro que isso não esteja a ser feito?
Penso que serão seguramente englobadas no processo. Temos uma dispersão única, uma enorme capilaridade das farmácias no país, os utentes têm enorme confiança nos farmacêuticos e as farmácias têm experiência na administração de vacinas e em colaborar com o Serviço Nacional de Saúde [SNS]. Mas nesta primeira fase faz sentido serem os serviços de saúde ocupacional a coordenar todo o processo [de vacinação dos profissionais].
Este ano, devido à pandemia, o centro hospitalar teve seguramente um esforço financeiro muito maior. O São João tem o melhor desempenho do seu grupo, com um gasto por doente padrão inferior em 28% ao de Lisboa Central, por exemplo. Este resultado não se deveria reflectir num aumento do financiamento do São João?
Ao longo dos últimos anos, o nosso centro hospitalar tem conseguido aumentar a eficiência e tirar mais partido dos seus recursos. É pena que o financiamento não acompanhe na mesma proporção a nossa capacidade de limitar gastos e de, graças a isso, poder fazer investimentos. O mérito pela gestão acaba por não ter nenhuma retribuição.
Vão conseguir cumprir o que estava orçamentado para este ano?
O orçamento anda por volta dos 400 milhões de euros por ano, em 2020 estava previsto um défice de cerca de 30 milhões e esperamos algo de semelhante no final do ano. A gestão foi muito complexa, houve áreas em que gastamos menos, outras em que gastamos muito mais mas houve uma capacidade de ajustamento das várias rubricas para chegar ao final do ano com o que estava contratualizado.
O que pensa do Orçamento do Estado para a saúde no próximo ano?
O orçamento para a saúde é sempre insuficiente. Mas, mais do que o valor, o que é importante é a capacidade de utilizar as verbas com celeridade e autonomia. O volume global [de financiamento] aumenta, mas depois temos que percorrer um caminho enorme de autorizações do Ministério das Finanças.
"Temos algum receio que esta quadra natalícia leve a um aumento de novas infeções e que tenhamos, em meados de janeiro, um novo pico de internados e, sobretudo, de internados nos cuidados intensivos"
Qual é o ponto da situação no hospital de S. João?
Hoje [terça-feira] temos 120 doentes internados, dos quais 45 em cuidados intensivos. A procura da urgência por parte dos doentes com Covid-19 tem reduzido e a taxa de positividade nos testes também tem diminuído, mas continuamos com um número muito elevado de doentes nos cuidados intensivos, muitos dos quais graves e demorará ainda dias ou semanas a poder retirá-los dos ventiladores.
O hospital de S. João foi pioneiro na adoção de várias medidas logo no início da pandemia. A tutela foi lenta nas decisões que vieram a validar posteriormente as opções do S. João?
Nós tivemos que tomar decisões rapidamente. Às vezes as direções nacionais precisam de mais dados para tentar encontrar com grupos de trabalho e peritos decisões bem fundamentadas e que possam ser aplicadas a todo o país. Mas na altura nós não tínhamos outra alternativa se não a de avançar com o processo.
O uso de máscaras foi uma das medidas mais relevantes, as infeções reduziram a pique no hospital. A primeira norma da Direção-Geral da Saúde também dizia que os doentes tinham que ser internados, mas, se internássemos todos, não tínhamos capacidade para dar resposta. A decisão de acompanhar em ambulatório, telefonando aos doentes menos graves em casa, foi a tábua de salvação para evitar o colapso hospitalar.
Os planos de contingência nacionais foram elaborados sem ouvir os hospitais?
Foram de alguma forma ouvidos tardiamente, na segunda vaga especialmente. O facto de o plano Outono-Inverno ter surgido em cima do início do Outono e de forma muito genérica levou a que, se algumas instituições estivessem à espera de regras muito práticas, houvesse um atraso significativo na implementação dessas regras. Entrámos nesta segunda vaga com excesso de confiança e isso tem os seus custos.
Está à espera de uma terceira vaga em breve?
É previsível que possa haver uma terceira vaga. Esperemos que não, mas estamos a preparar-nos claramente para uma terceira vaga.
É previsível que aumente a pressão na urgência e no internamento em meados de janeiro, por isso não desmobilizamos a máquina toda, vamos mantendo-a e melhorando até alguns aspetos para, quando necessário, poder activá-la. Atualmente estamos no nível três de quatro níveis do plano de contingência.
O aparecimento da nova estirpe do coronavírus no Reino Unido é um sinal de que ainda vamos ter muitos percalços nos próximos meses?
Penso que não. É verdade que as variantes existem, que o vírus vai mutando, mas, quanto à eficácia em si desta vacina, diria que está salvaguardada do ponto de vista mais global.
Acha que o Governo foi muito permissivo em relação ao Natal, ao não instituir um máximo de pessoas em cada casa nessa noite?
Temos algum receio que esta quadra natalícia leve a um aumento de novas infeções e que tenhamos, em meados de janeiro, um novo pico de internados e, sobretudo, de internados nos cuidados intensivos.
A Ordem dos Médicos sugeriu um máximo de 10 pessoas na ceia de Natal. Insisto: o Governo devia ter indicado um número máximo?
Não há nenhum número mágico. O número vai variando de país para país. Acho que acima de tudo tem que haver um enorme civismo.
Tem dito que o SNS não está a trabalhar de forma coerente e integrada. Pode ser mais específico?
Tem que haver um esforço maior, uma estratégia em conjunto, uma visão global para que os doentes não andem de um lado para outro sem saberem onde se devem dirigir.
Também afirmou que o SNS se encontra num ponto sem retorno e que terá no biénio 2020/2021 a sua maior prova de vida. Antevê uma crise no curto prazo?
A pandemia trouxe aspetos muito negativos mas também trouxe oportunidades e desafios. Olhar para o futuro não é voltar a construir o SNS que tínhamos em 2019 mas sim construir um SNS muito mais eficaz e centrado no utente. A prova de vida do SNS é reinventar-se.
"[Os planos de contingência nacional] foram de alguma forma ouvidos tardiamente, na segunda vaga especialmente. [...] Entrámos nesta segunda vaga com excesso de confiança e isso tem os seus custos"
A Covid trouxe-nos uma mudança de paradigma, temos que aproveitar esse élan para mudar o SNS. Uma das questões muito discutidas passa pela referenciação dos utentes pelos cuidados saúde primários. Esta é uma lacuna que tem que ser rapidamente ultrapassada. Tivemos este ano cerca de menos 30% de referenciações dos cuidados de saúde primários e um aumento das faltas dos doentes às consultas. Na cardiologia e na oncologia foram referenciados menos um em cada três doentes em comparação com a média dos últimos anos. Estamos a perder doentes.
Está preocupado com os doentes não-Covid?
Estou muito preocupado com esses doentes. Quando não se fazem rastreios, quando não se fazem diagnósticos, isso significa que perdemos doentes que não conhecemos. A incidência da patologia não reduziu, os enfartes não diminuíram…Se não apanhamos os doentes precocemente vamos apanhá-los para o ano numa fase mais tardia. E estamos a falar de números muito elevados.
As listas de espera baixaram muito?
Devemos acabar o ano com menos 50%. A verdade é que isso aconteceu muito à custa da redução da procura e do aumento da produção no Verão.
Qual é a percentagem de doentes que deixaram de ir às consultas?
Em geral temos uma taxa de absentismo por volta de 8 a 10%, mas com a pandemia duplicou, oscila entre 15 a 20%, o que significa que as pessoas não procuram os cuidados de saúde por causa de algum receio.
Quantos profissionais de saúde contrataram por causa da pandemia?
Contratamos cerca de 200 pessoas, sobretudo enfermeiros e assistentes operacionais, médicos foi numa quantidade muito limitada. Os contratos eram por quatro meses, eventualmente renováveis, e isso no caso dos médicos não é muito atractivo.
Não está previsto contratar mais profissionais para enfrentar a eventual terceira vaga?
O que está previsto são substituições. Só temos autonomia para substituições, para contratos de quatro meses. Precisamos de autonomia, em relação ao Ministério das Finanças, para fazer contratos sem termo nas áreas que achamos necessário. O que esta primeira vaga demonstrou foi a capacidade de ter mos autonomia com responsabilidade. Não é possível continuarmos por vezes meses e meses à espera da contratação de um profissional de saúde quando temos estudos que demonstram claramente a mais valia, até do ponto de vista económico, dessa contratação.
Como é que olha para o prémio atribuído a apenas alguns profissionais?
Com alguma insatisfação. Nós atuamos em equipa. Para alguns estarem a tratar doentes Covid outros tiveram que estar a tratar doentes não-Covid com o mesmo empenho e o mesmo esforço. E há outras áreas de suporte tanto ou mais importantes que também não vão ter prémio. Isso gera alguma desilusão. Acho que [o prémio deveria ser atribuído] de uma forma global aos que estiveram a trabalhar.
A ala pediátrica devia estar concluída em 2021 após um investimento de 20 milhões de euros. Estas metas serão alcansáveis?
Estamos a fazer todos os esforços nesse sentido. É verdade que houve problemas porque tivemos profissionais da construção infectados, material que vinha de outros países e que não chegou a tempo e horas, mas continuo com enorme expectativa de cumprir a promessa que era ver finalmente este sonho ser concluído com sucesso em 2021.
É mais difícil ser presidente do conselho de administração do São João ou secretário de Estado?
É muito mais difícil ser presidente do conselho de administração do centro hospitalar. É verdade que, quando somos secretários de Estado, tomamos medidas muito transversais, mais abrangentes e impactantes, mas num hospital estamos muito mais próximos da realidade, dos doentes, dos profissionais, dos problemas e isso acaba por ser muito mais dramático e exigente. Lá em baixo, na João Crisóstomo [no Ministério da Saúde], estamos muito longe das pessoas.
Disse que em Lisboa se desconhece o resto do país.
Não tenho nenhuma dúvida, cada vez mais sinto isso. A realidade, nomeadamente no Norte do país, é muito menos conhecida em Lisboa, nos ministérios e administração pública, e isso limita claramente a capacidade de intervenção nos locais e nas regiões. Isso também devia ser repensado.