Tudo começou na passada segunda-feira com um encontro casual no aeroporto de Phoenix, no Arizona.
O avião do antigo presidente Clinton cruzou-se na pista com o avião do governo americano que transportava a ministra da Justiça – attorney general, na designação americana –, cuja função equivale em Portugal simultaneamente à de ministra da Justiça e de procuradora-geral.
Velhos amigos, Bill Clinton decidiu dirigir-se ao avião de Loretta Lynch para a cumprimentar e ter uma conversa de cortesia. O encontro durou menos de meia-hora e terá versado questões banais, como os netos de ambos, viagens, golfe, nada de carácter político, excepto o “Brexit”. O marido da ministra estava presente, o que acentua o carácter social do encontro.
Nada de censurável, certo? Errado. E errado porque Loretta Lynch tutela o inquérito que está a decorrer sobre a utilização de um servidor privado por Hillary Clinton para troca de emails durante o seu mandato como secretária de Estado, entre 2009 e 2013.
Responsáveis do FBI e procuradores averiguam há meses se o uso desse servidor, no qual circulou informação confidencial, para além de ter violado as regras da administração americana a que todos os funcionários estão vinculados, é susceptível de ser considerado um comportamento criminal e por isso desencadear o respectivo processo judicial.
Uma ameaça séria que paira sobre Hillary Clinton a cerca de quatro meses das eleições presidenciais.
Na quinta-feira, quando se soube publicamente do encontro acidental entre Bill Clinton e a ministra, as críticas e as suspeições surgiram de todo o lado, incluindo de alguns democratas. Os republicanos, naturalmente, foram os críticos mais ferozes, levantando suspeitas sobre o carácter inofensivo do encontro, enquanto o candidato Donald Trump lhe chamava “encontro furtivo” e aproveitava para “confirmar” a sua tese de que todo o sistema político está “viciado” e tem de mudar.
A censura
Mas inúmeros comentadores, jornalistas, independentes e membros do Partido Democrático vieram também a público censurar o encontro, admitindo que ele configurava um possível conflito de interesses, comprometendo a independência do inquérito judicial em curso. Acresce que Loretta Lynch tutela o inquérito enquanto procuradora-geral e já tinha sido apontada para este cargo em 1999 pelo então presidente Clinton.
Houve mesmo quem lembrasse que se a ministra tem uma amizade antiga com a família Clinton nunca deveria ter aceitado que o inquérito a Hillary corresse no âmbito das suas competências. Houve também quem tivesse sugerido que Loretta apontasse um investigador especial, fora do âmbito da procuradoria, para conduzir o inquérito.
A pressão aumentou na opinião pública e, na mesma quinta-feira, Loretta Lynch descreveu o carácter acidental do encontro e garantiu que ele não tinha abordado temas políticos internos e muito menos a questão do inquérito a Hillary Clinton.
No entanto, essas garantias não foram suficientes para enterrar o assunto. O próprio porta-voz da Casa Branca, interrogado sobre o caso, sublinhou que “o estado de direito é soberano” e que “a confiança do público não pode ser corroída e tem de haver um esforço para tornar claro que estas investigações não podem ser influenciadas pela política”.
Menos de 24 horas depois, a ministra sentiu-se na obrigação de clarificar o assunto e reconheceu o erro cometido. Convidada de um “festival de ideias” no Colorado, Loretta Lynch admitiu que o encontro tinha “lançado uma sombra sobre a forma como o público via o seu trabalho” e o da procuradoria-geral e que “certamente não o faria de novo”.
“As pessoas têm muitas razões para questionar a forma como o governo trabalha e o meu encontro com o presidente Clinton pode ter-lhes dado motivos para mais interrogações e preocupações”, confessou.
O FBI vai decidir
E para dissipar dúvidas sobre a independência do inquérito aos emails de Hillary Clinton comprometeu-se a aceitar “quaisquer recomendações que os procuradores ou o FBI façam”, incluindo uma eventual acusação criminal. O caso será decidido pela mesma equipa que nele tem trabalhado desde o início, garantiu ainda.
Uma decisão que terá sido tomada há meses e não na sequência do encontro com Bill Clinton. Segundo a ministra, há meses que tinha decidido submeter-se às recomendações apontadas pelos procuradores e pelo director do FBI porque o facto de exercer um cargo de nomeação política e intervir num caso deste tipo poderia levantar questões sobre conflitos de interesses.
O porta-voz da Casa Branca comentou mais tarde que não tinha havido qualquer interferência presidencial nesta decisão. As declarações de Loretta Lynch parecem ter posto um ponto final na controvérsia, que demonstra o quanto as questões da independência no exercício de funções e possíveis conflitos de interesse são levados a sério nos Estados Unidos.
O FBI tem sofrido pressões para concluir quanto antes o inquérito a Hillary, já que a aproximação das eleições presidenciais transformou este caso dos emails privados de Clinton no seu maior pesadelo. Já foram interrogadas dezenas de pessoas, incluindo inúmeros colaboradores da secretária de Estado, mas Hillary ainda terá de depor.
De todas as investigações feitas até agora ao caso, a da procuradoria e do FBI é a mais importante, já que é a única que pode terminar em acusação criminal.