O antigo embaixador de Portugal junto da Santa Sé António Almeida Ribeiro considera que o Papa Francisco é "uma referência moral, uma voz respeitada além da comunidade dos fiéis católicos” e antevê que irá deixar “um legado com um peso grande no futuro da Igreja Católica”.
Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, a três dias de Francisco assinalar 11 anos de Pontificado, o embaixador português que iniciou funções no Vaticano dois dias antes do cardeal argentino ser eleito refere que “este Papa tentou mexer em algumas tradições que estavam muito arreigadas e, portanto, é normal que crie uma reação”.
Almeida Ribeiro, que hoje é secretário-geral adjunto do KAICIID, Centro de Diálogo Internacional, aplaude a simplicidade do Papa que “fala uma linguagem que todos percebem”, algo que "é importante para a Igreja” porque promove “sentimento de proximidade”.
Num tempo de elevada conflitualidade e com duas guerras em curso, o diplomata sublinha que “a diplomacia do Vaticano é muito discreta, mas continua a ser respeitada e eficaz”.
Nesta entrevista, o embaixador Almeida Ribeiro recorda os momentos que levaram à eleição de Francisco e relata, na primeira pessoa, como se tornou no primeiro embaixador estrangeiro a apresentar credenciais ao novo Papa. “Foi um momento muito especial, porque foi um encontro a sós”, sublinha.
O diplomata admite que no início ficou surpreendido com a empatia que Francisco revelou para com o nosso país, porque tinha ficado com a impressão de que “o Papa pouca relação tinha com Portugal”. Com a descoberta, “aos poucos”, do que era Fátima e do que era o país, “ele ficou rendido a Portugal”.
“O facto de neste momento termos seis cardeais, dois eméritos e quatro mais recentes, faz com que seja uma honra inédita para Portugal”, aponta.
Na próxima quarta-feira, passam 11 anos da eleição do Papa Francisco. Dois dias antes, a 11, o senhor embaixador chegava ao Vaticano. Com que impressão ficou dele? Que imagem guarda dos primeiros contactos?
Cheguei, de facto, a Roma no dia 11 de março e o Conclave elegeu o Papa no dia 13, dois dias depois. Portanto, já estava em funções, nessa altura. Estava como muitas pessoas que faziam o mesmo, à frente do televisor, aguardando pelo fumo branco saído da chaminé da Capela Sistina.
No dia 13, ao fim da tarde, o fumo começou a ser acinzentado, mas, depois, claramente, tornou-se num fumo branco, sinal de que o Papa tinha sido escolhido pelos cardeais eleitores. Uma meia hora depois - talvez um pouco mais - é anunciado o nome do novo Papa na fachada principal da Basílica de São Pedro.
Para muitos foi uma surpresa. O nome "Bergoglio" era pouco conhecido do público, mas, no meu caso, que tinha sido embaixador em Buenos Aires, o nome era, como é óbvio, muito familiar. Imediatamente identifiquei que era o cardeal arcebispo de Buenos Aires que tinha acabado de ser eleito Papa. Depois, o novo Papa veio à varanda, fez aquela primeira comunicação aos fiéis, simples, como característica sua desde sempre.
O nome escolhido foi também uma surpresa para toda a gente, mas percebeu-se nos anos seguintes como o Papa tem uma ligação muito grande a São Francisco de Assis, e, portanto, tudo faz sentido, embora naquela altura fosse ainda uma surpresa.
Uma entre as várias surpresas que ali estavam, não era?
Exatamente.
Após a primeira vez em que teve a oportunidade de estar com o Papa Francisco, com que impressão ficou?
Isso aconteceu quando eu apresentei as credenciais ao Papa Francisco, umas semanas depois, em abril. Foi um momento muito especial, porque foi um encontro a sós.
Por uma coincidência extraordinária, fui o primeiro embaixador estrangeiro que apresentou credenciais ao Papa Francisco. Sucedeu aliás um episódio curioso. Quando cheguei a Roma, havia dois embaixadores que tinham chegado antes de mim, um que era o embaixador do Irão e o embaixador da Rússia. Ambos esperavam para que o novo Papa fosse eleito e entregassem as credenciais ao novo Papa.
Sucede que eu, discretamente, fui sondado pelos serviços do protocolo do Vaticano. Na altura, o chefe do protocolo era um luso-canadiano, D. José Bettencourt, atualmente núncio nos Camarões. Perguntaram-me se eu conseguiria, rapidamente, obter as credenciais dirigidas ao novo Papa, porque, se eu conseguisse ser mais rápido do que os meus colegas do Irão e da Rússia, passaria à frente, fazendo um pouco vista larga para as regras.
E o senhor embaixador não se fez rogado...
Não me fiz rogado, achei mesmo que foi uma deferência para com Portugal, porque, assim, era um embaixador católico de um país maioritariamente católico que tinha a primazia.
Percebeu desde cedo a ligação de Francisco a Portugal, a ligação que vemos hoje, com duas viagens ao país e com a criação de vários cardeais portugueses? Ou foi algo que o surpreendeu?
Surpreendeu-me, porque a impressão com que fiquei foi a de que o Papa Francisco tinha pouca relação com Portugal. Creio que nunca tinha vindo a Portugal, nunca tinha estado em Fátima, mas penso que ele, aos poucos, foi descobrindo o que era Fátima e o que era Portugal. E ficou rendido a Portugal. O facto de, neste momento, termos seis cardeais, dois eméritos e quatro mais recentes, é uma honra inédita para Portugal. Portugal nunca teve tantos cardeais ao mesmo tempo. É um número que, realmente, ultrapassa aquilo que seria esperado de um país com a dimensão de Portugal.
O Papa foi descobrindo o nosso país. A primeira viagem a Fátima, em 2017, creio que foi para ele de uma felicidade enorme. Ele próprio, depois, quando me despedi no final das minhas funções, transmitiu-me esse sentimento. O sentimento de ter gostado imenso daquele banho extraordinário de multidão que o acompanhou durante toda a visita e, depois, a Jornadas Mundial da Juventude que foi outro momento absolutamente extraordinário que o Papa Francisco pôde viver no nosso país.
Atualmente, o senhor embaixador exerce funções de secretário-geral adjunto do KAICIID, do Centro de Diálogo Internacional, que tem a missão de promover o diálogo inter-religioso e intercultural. Francisco tem sido um dos grandes promotores desse diálogo, com momentos marcantes, particularmente no Médio Oriente. É uma preocupação dele que percebeu nos seus contactos com Francisco?
Sem dúvida nenhuma, isso tem sido uma constante muito clara do atual Papa. Mas eu recordo que esta organização de que sou secretário-geral adjunto foi criada ainda no tempo do anterior Papa, Bento XVI, e foi uma iniciativa conjunta de Bento XVI e do então rei saudita Abdullah, que fez uma visita histórica e que nunca se repetiu, nem nunca tinha havido antes, ao Vaticano.
O Papa e o Rei Saudita encontraram-se. Penso que o Papa tinha tido aquela intervenção em Ratisbona que causou tanta controvérsia e admito, refletindo sobre a criação do KAICIID, que esta iniciativa conjunta do rei saudita e do Papa tenha sido também da parte do Papa uma maneira de, de certa forma, ultrapassar a controvérsia que foi causada com as declarações que, porventur, foram mal interpretadas ou não foram corretamente interpretadas. A organização, este centro internacional de diálogo foi criado pelo antecessor, mas não há dúvida nenhuma de que o Papa Francisco tem dado um enorme contributo para valorizar o diálogo entre as religiões.
A declaração de Abu Dhabi sobre a fraternidade humana, de 2019, é um marco disso. A 4 de Fevereiro, aliás, celebrámos o quinto aniversário, e é uma constante do pontificado, claramente.
Essa declaração de Abu Dhabi ou a "Fratelli Tutti" ganham particular relevância neste contexto internacional que é cada vez mais marcado por conflitos e por tensões...
Exatamente. Foi uma declaração absolutamente notável em que tanto o Papa - líder da Igreja Católica - como o principal líder sunita, o grande imã do Al-Azhar no Cairo, declaram que o diálogo é fundamental e que é através do diálogo que as tensões se diminuem, que se evita o agravamento dos conflitos, das guerras. Sem diálogo tudo é pior e, portanto, ambos defendem o diálogo como um meio, um instrumento absolutamente essencial para a paz e para a convivência entre os homens.
Concluiu o seu serviço diplomático como embaixador junto da Santa Sé, mas acredito que, de regresso a Portugal, tenha continuado a acompanhar com atenção este Pontificado e os passos que o Papa Francisco tem dado. O que é que destacaria nestes 11 anos? O que é que o marcou mais do Papa Francisco?
Marcou-me, talvez, a simplicidade deste Papa, a humildade dele, a proximidade às pessoas, aos mais fracos, aos mais vulneráveis, àqueles que precisam mais de ajuda. Ele é uma voz amiga, próxima, simples, fala de uma forma simples para as pessoas, muito diferente do seu antecessor. Ele não é um teólogo, parece-me...
Pelo menos, académico…
Exatamente. Fala uma linguagem que todos percebem e isso, penso, também é importante para a Igreja. É importante ter esse sentimento de proximidade entre o Papa e os fiéis. E não só em relação aos fiéis, vai muito mais para lá disso.
Os apelos à paz são uma preocupação diária de Francisco, mesmo para alguns dos conflitos esquecidos pela opinião pública. O Papa tem sido, em muitos casos, uma das poucas referências globais que evoca o sofrimento de milhões de pessoas nos cinco continentes?
Sem dúvida nenhuma, é uma referência moral, uma voz respeitada, é uma personalidade ímpar que pelo seu bom senso, pela sua bondade. É escutado e respeitado em todo o mundo, muito para além da comunidade dos fiéis católicos. Ele é ouvido por muito mais do que os católicos.
Pela experiência que tem, entende que a diplomacia da Santa Sé continua a ser essencial para a resolução de alguns dos conflitos que estão em curso?
Eu penso que sim. A diplomacia do Vaticano é uma diplomacia muito discreta, mas nós não podemos esquecer que a Santa Sé tem ramificações em todo o mundo. Não são só as nunciaturas: são os bispos, nas várias cidades, nos vários continentes, as congregações missionárias, as congregações religiosas... Portanto, há um manancial de informação que a Santa Sé tem, que lhe provém dessa rede única. Isso dá-lhe, logo à partida, uma informação privilegiada sobre o que se passa em todo o mundo.
Permite antecipar problemas…
Antecipar problemas. A intervenção da Santa Sé é enormemente discreta, mas penso que continua a ser respeitada e eficaz. Uma palavra da Santa Sé é uma palavra que é ouvida.
Há quem critique e que diga que, por vezes, é discreta demais, não concorda?
Eu penso que a principal missão da Igreja é difundir a fé católica e, portanto, não devemos estar à espera que a Santa Sé faça política ativa, porque não lhe compete. Compete-lhe, sim, sensibilizar os governos, os povos, as várias instituições em todo o mundo para a importância da paz. A paz é um objetivo fundamental da Igreja Católica e é nesse sentido que toda a diplomacia vaticana se move.
Falou do facto de o Papa ter conseguido alargar fronteiras. A encíclica "Laudato Si", de 2015, a famosa encíclica do Papa sobre a Ecologia Integral, que surge no contexto do processo que deveria levar à assinatura dos Acordos de Paris sobre as Alterações Climáticas, recoloca a Igreja em diálogo com um conjunto de protagonistas diversos e até inesperados, se calhar. Foi um dos passos do Papa Francisco que permitiu alargar estas fronteiras no seu discurso?
Sem dúvida nenhuma. Esta foi a segunda encíclica do Papa. A primeira foi a "Lumen Fidei", "Luz da Fé", que é de 2013, mas que tinha sido ainda iniciada pelo anterior Papa. Basicamente, sintetiza uma série de reflexões do Papa Bento XVI.
A "Laudato Si" é, verdadeiramente, a encíclica, a primeira grande encíclica do Papa Francisco, e, tendo escolhido este tema da Casa Comum, do respeito pelo ambiente e pelo mundo que nos rodeia, penso que isso vem muito na sequência daquilo que o Papa Francisco é. Sem dúvida nenhuma, o tema, atualmente, é um tema global e o Papa “agarrou” muito bem, de forma muito positiva e muito oportuna, esta grande encíclica que fez.
Este Papa tem sabido falar às periferias e a todos os que, não sendo católicos, se identificam com as suas preocupações sociais e humanitárias. Aliás, há pouco, o senhor embaixador dizia que o Papa é ouvido por muito mais do que apenas católicos...
Absolutamente. Acho que este Papa conseguiu essa proeza, diria, extraordinária, que é a de ser ouvido em todo o mundo. Eu conheço pessoas que não são católicas e que me dizem “eu gosto tanto deste Papa, eu gosto imenso daquilo que ele diz”. Portanto, é muito claro para mim que o Papa Francisco conseguiu ir para além das fronteiras que a sua constituição de fiéis poderia imaginar.
O facto de ser ouvido tem também a ver com essas preocupações sociais e humanitárias que ele expressa?
Sem dúvida nenhuma. Vivemos num mundo com cada vez mais problemas sociais, conflitos graves que se arrastam anos e anos. Creio que a voz do Papa tem sido um referente mundial, global, nestas matérias.
Faço-lhe uma pergunta mais interna, sobre a dinâmica da Igreja e aquilo que o Papa Francisco tem procurado implementar na vida das comunidades católicas. Falo do processo sinodal em curso. Do seu ponto de vista, esta foi uma forma que o Papa encontrou de abrir a Igreja ao mundo contemporâneo e ao diálogo com as suas necessidades e as suas perguntas?
Penso que sim, que intenção seria essa. É claro que é um processo que ainda não terminou, ainda decorre e, portanto, há que esperar para ver que conclusões são retiradas. Mas é um processo inovador, sem dúvida, que reflete muito esta preocupação do Papa de abertura, de ouvir o outro, de acolher o outro. Ao abrir este debate, o Papa está a ser igual a ele próprio, está a defender aquilo que é a sua maneira de ser, desde sempre.
A popularidade do Papa em setores tradicionalmente afastados da Igreja contrasta com algumas tensões e críticas no plano interno. É algo que o surpreende?
Não me surpreende, totalmente. O Papa, estando integrado, é o chefe da Cúria Romana e a Cúria Romana, é sabido, tem um pendor conservador muito forte e, portanto, qualquer mudança...
Até pela sua natureza…
Até pela sua natureza, é normal que assim seja, sempre foi assim e, provavelmente, sempre será. Este Papa tentou mexer em algumas tradições que estavam muito arreigadas e, portanto, é normal que isso crie uma reação. Mas o Papa é o Papa e foi ele que foi eleito. Portanto, tem a autoridade para poder reorganizar a Igreja e, mesmo com contestação, não tenho dúvida de que o Papa tem o apoio maioritário dos seus pares e dos cardeais da Cúria.
Há sempre resistência à mudança...
Há sempre resistência à mudança, é normal.
O tipo de liderança que o Papa Francisco imprimiu à frente da Igreja Católica é uma inspiração para o resto da sociedade? Este tipo de liderança também ajudou, de algum modo, a mudar o mundo nestes 11 anos?
Eu julgo que sim. Ele é um líder, chamemos-lhe assim, um líder que escuta, não é um líder autoritário. Ele quer saber, quer perceber o que é que as outras pessoas pensam e sentem para atuar em conformidade e em consonância com o que as pessoas também sentem e precisam. Portanto, julgo que é uma maneira muito diferente de atuar de outros pontificados, sem dúvida nenhuma, em que porventura haveria mais centralismo na figura do Papa. Este Papa não: é aberto, ouve, escuta, preocupa-se em saber o que é que os outros pensam e querem e precisam. Isso acho que é uma mudança significativa e que vai, penso eu, caracterizar este Pontificado.
Essa preocupação justifica também esta atenção social que tem sido tão marcante no Pontificado: a atenção ao outro?
Penso que sim. E penso que isso também seria inevitável que acontecesse. É um Papa com uma maneira de ser diferente, provavelmente inesperada, para muitos, mas a verdade é que ele é aquilo que sempre foi. Para quem o conhecia do passado, na Argentina, ele não é uma surpresa, o Pontificado não é uma surpresa.
Esta maneira de ser e de liderar vai criar dificuldades para o próximo Papa?
Bom, veremos quem será o próximo Papa, é muito difícil fazer previsões, mas, evidentemente, o legado do Papa Francisco vai ter um peso grande no futuro da Igreja Católica.