Ana Gomes escreveu a António Costa para sugerir que o Governo português desse asilo político a Edward Snowden para participar na Web Summit. Para a antiga eurodeputada do PS a possibilidade de o denunciante sair da Rússia só não se concretizou por receio do governo português e de outros governos, aos quais também dirigiu missivas.
“Edward Snowden, coitado, só está na Rússia porque não tem nenhum outro sítio onde estar, porque nenhum governo europeu, por medo da retaliação dos americanos, lhe facultou acesso”, diz à Renascença.
O denunciante poderia ser “muito importante e valioso”, diz Ana Gomes, mas “Snowden só não pode vir pessoalmente [à Web Summit] porque nenhum governo, designadamente o português, se chegou à frente para lhe dar visto para ele poder cá vir e eventualmente cá ficar”, sublinha. “E estar na Rússia não é obviamente ideal para a protecção dele, para a protecção de quem quer que seja.”
É uma das grandes ironias da maior cimeira de tecnologia que se realiza há quatro anos em Lisboa, para Ana Gomes. A antiga diplomata veio à Web Summit a convite da Renascença para participar no programa “Em Nome da Lei” sobre denunciantes, que vai para o ar este sábado.
E há ainda contradição, diz Ana Gomes, a envolver particularmente a justiça portuguesa – e tem um nome: Rui Pinto.
“A Web Summit que abre com Edward Snowden realiza-se no país que tem na prisão há sete meses Rui Pinto, que é um denunciante reconhecido a nível global pela importância que teve na exposição da corrupção do futebol e negócios conexos”, defende a antiga diplomata.
“É uma vergonha total para Portugal”, afirma, aos microfones da Renascença.
Para a antiga eurodeputada do PS, o caso de Rui Pinto expõe também as vulnerabilidades da administração pública e do Estado português em termos de segurança informática.
A ser verdade a acusação de que Rui Pinto conseguiu aceder a e-mails de procuradores da República, “isso só demonstra que o próprio sistema de justiça é uma balela”, diz Ana Gomes.
“Se um jovem autodidata em informática consegue aquilo, então o que não acontecerá com a criminalidade organizada que, em muitas áreas, está sempre à frente das autoridades e que utiliza meios informáticos para controlar, para capturar, para corromper as administrações públicas? Eu tenho muita pena de dizer que este caso é uma demonstração da nossa vulnerabilidade”, alerta.
Web Summit? "Prefiro que ministro para transição digital aproveite milhões de Bruxelas para promover PME portuguesas e acabar com promiscuidade com multinacionais"
Vulnerabilidade que se pode estender a unidades que investigam crimes que usam meios informáticos, como as da Polícia Judiciária, por falta de meios, mas também a infraestruturas críticas como centrais nucleares ou barragens.
“Se não há garantia de proteção desses sistemas, se são vulneráveis à criminalidade organizada, incluindo terrorismo, estamos feitos. E não tem havido investimento suficiente. Ao nível europeu há consciência disto. Que ao nível nacional haja consciência disto e investimento na cibersegurança e ciberdefesa? Não. Temos só aí umas coisas para inglês ver, mais nada.”
E agora com um governo que até tem um ministro com a pasta da “transição digital”? Ana Gomes espera que isso se traduza em “investimento massivo” na proteção dos sistemas e nas “fantásticas” ‘startups’ portuguesas, lembrando que sãos as grandes multinacionais – “as Oracles, as IBMs ou as Microsofts” – que fazem os cadernos de encargos para investimento do Estado na área digital, “com preços que lhes são convenientes, e que depois concorrem e ganham os concursos, numa promiscuidade e perversão total”.
“Preferia, de um governo que tem um ministro da transição digital, que aproveite a extraordinária oportunidade com os milhões da União Europeia para a transição digital para promover as PME nacionais, dando-lhes oportunidade para desenharem os cadernos de encargos e concorrerem, não só para garantir melhores preços, mas para que o próprio desenho dos sistemas seja mais adequado à nossa realidade”, diz a ex-eurodeputada. “Espero que seja a grande contribuição do ministro [Siza Vieira]”.
“Gastamos imenso dinheiro na Web Summit. Óptimo. Gosto imenso. Para o turismo é fantástico, há aqui oportunidades para as empresas e os jovens, e sem dúvida tem posto o país no mapa na era digital. Mas depois que tenha correspondência ao nível do reforço dos nossos mecanismos de segurança e para dar resposta às necessidades do Estado”.
Ana Gomes dá ainda o exemplo da Autoridade Tributária: “hoje tem montes de informação que resulta das diretivas que aprovamos no Parlamento Europeu sobre a troca de informação automática com autoridades de outros países, mas não tem capacidade para fazer rapidamente análise e cruzamento de dados”.
Protecção de dados em Portugal? “Opacidade total”
Já longe de Estrasburgo, Ana Gomes continua a defender o esforço do Parlamento Europeu em regulamentar a protecção de dados. Mesmo perante as críticas de Edward Snowden.
“O Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD) não é perfeito, mas é de longe a regulamentação mais avançada que há no mundo e que mostra que a União Europeia tem impacto universal. Mas ter leis muito bonitas aqui em Portugal não chega. A questão é sempre como se aplicam as leis. E se se aplicam e se há entidades encarregadas de zelar pela aplicação da lei. E esse é um combate permanente.”
A jurista aponta dificuldades de “pessoal, formação e equipamento” da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), aproveitando para voltar a criticar o parecer fornecido ao antigo ministro Miguel Macedo, que a impediu de ter acesso à lista dos beneficiários dos vistos gold, ao contrário do que aconteceu em Malta e Chipre. “São intervenções perversas que do meu ponto de vista descredibilizam a proteção de dados e vulnerabilizam a sociedade”.
“Em Portugal é opacidade total e que isso seja feito com base num parecer da nossa comissão é assustador, realmente.”
As reflexões de Ana Gomes sobre o digital surgem numa Web Summit que diz expor contradições “imensas”.
“É extraordinário que esta seja a quarta edição da Web Summit [em Portugal], que tem finalmente o grande ‘leit motiv’ da proteção de dados e da proteção dos cidadãos. Um tema que nos últimos cinco anos, no Parlamento Europeu, era o nosso dia a dia. E foi por isso que nós fizemos todos estes relatórios [Ana Gomes tem um sobre “big data” e o acesso de seguradoras a dados sensíveis] e criámos o RGPD.”