A partir deste domingo, a Casa do Território, em Famalicão, evoca a memória dos portugueses que foram sujeitos a trabalhos forçados durante a II Guerra Mundial nos campos de concentração da Alemanha nazi.
A exposição temporária “Trabalhadores Forçados Portugueses no III Reich” esteve patente pela primeira vez em 2017 no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, já passou por Loulé e, após um ano de interrupção, por causa da pandemia da Covid-19, a exposição volta à estrada, desta vez, em Famalicão, onde serão exibidos aspetos inéditos sobre famalicenses cuja investigação revelou que também foram vítimas diretas do nazismo.
São fotografias, objetos pessoais e documentos reunidos por investigadores do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, coordenados por Fernando Rosas.
Em declarações à Renascença, o historiador reconhece que este é um assunto de que pouco se fala, porque “estamos a falar de uma memória que se perdeu, porque o regime do Estado Novo tratou de ocultá-la a seguir à II Guerra Mundial, através da censura à imprensa”.
Fernando Rosas lembra que, na época, a postura do regime liderado por Salazar era de uma “propositada abstenção” de se meter no assunto das vítimas do nazismo, “o que deixou muita gente ir para os campos de concentração e não se fez nada. Nem para os tirar de lá, nem para impedir que eles fossem”.
No local errado à hora errada
Quando a II Guerra Mundial começou, em 1939, os cerca de 30 mil portugueses que estavam emigrados em França estavam longe de imaginar o que o destino lhes ia reservar.
Em maio de 1940, a ocupação alemã foi implacável e a capitulação das forças francesas humilhou o país ao ponto de ser instaurada uma administração francesa comandada pela cadeia hierárquica liderada por Hitler.
“Foi o governo colaboracionista do marechal Pétain”, que fez um acordo com o sistema nazi de recrutamento de força de trabalho, “que tinha duas modalidades possíveis: num primeiro acordo, por cada prisioneiro de guerra libertado, a França cedia três trabalhadores aos alemães; num segundo acordo, mais rígido, instituiu-se o serviço de trabalho obrigatório, à semelhança do que acontecia para o serviço militar. O quê que os franceses faziam num e noutro caso? Para poupar os franceses, mandavam os emigrantes”, conta Fernando Rosas.
No levantamento de documentação para esta investigação, o historiador conta que foram encontradas diferentes categorias de portugueses que, de uma forma ou de outra, acabaram nas mãos do sistema concentracionário do III Reich.
“Na pesquisa que fizemos no Ministério dos Negócios Estrangeiros, havia várias cartas de mulheres a dizerem que os maridos tinham sido chamados à gendarmerie e os maridos tinham desaparecido”, conta.
Por outro lado, com a ocupação alemã, “houve portugueses que se incorporaram na resistência contra o ocupante e foram apanhados nas malhas da Gestapo e da polícia política e foram entregues nos campos”.
“Havia também os refugiados da Guerra Civil de Espanha” que, após a vitória franquista, se refugiaram no sul de França.
“Aquando da ocupação alemã, há uma parte deles que se alistou para trabalhar em serviços de mobilização francesa e houve outros que foram, mesmo detidos, e foram para o campo de Mauthausen, que é, por assim dizer, o campo dos prisioneiros latinos”.
Até os presos de delito comum eram considerados “mobilizáveis” para os trabalhos forçados nos campos de concentração, sobretudo a partir de 1942, o ano em que se iniciou a contagem decrescente para a derrota nazi, na sequência de sucessivas derrotas no Norte de África e a Leste e que, em 1944, culminaram com o desembarque norte-americano na Normandia.
Nos últimos anos do conflito, com a enorme mobilização de alemães para combater nas quatro frentes da guerra, calcula-se que, na Grande Alemanha e no conjunto da Europa ocupada, tenham sido mobilizados, pelo menos, 20 milhões de trabalhadores estrangeiros.
Fernando Rosas lembra que, “sem isso, não havia economia de guerra na Alemanha” e Hitler nunca teria conseguido aguentar a guerra até 1945.
O projeto de reconstituição da vida das vítimas portuguesas do nazismo arrancou em 2014 e a identificação dos portugueses que estiveram presos no campo de concentração de Mauthausen, na Áustria, foi apenas o primeiro passo.
Em cerca de cinco anos, foram identificados “cerca de 100 portugueses no trabalho escravo, quer em campos de concentração, quer como prisioneiros”, detalha Fernando Rosas, para quem o dado mais curioso foi o elevado número de prisioneiros de guerra.
O alfaiate famoso do Porto
“Identificámos qualquer coisa como 300 portugueses nos 'Stalaggh', que eram campos de concentração de prisioneiros de guerra. Eram portugueses que se tinham alistado na Legião Estrangeira ou em corpos militares de estrangeiros voluntários que a França organizou no início da guerra para a defesa do país.
Eram casados com francesas, tinham feito a vida lá e alistaram-se, ou por solidariedade ou como modo de vida, nas forças francesas e foram apanhados pelos alemães com a derrota francesa”.
Contudo, nos 'Stalaggh', o regime era menos duro, ou, pelo menos, “não tinha aquela espantosa violência homicida dos campos de concentração”.
Os oficiais não trabalhavam e os prisioneiros recebiam uma pequena remuneração e podiam sair. Alguns até foram libertados antes da derrota da Alemanha.
Uma dessas histórias é a “um célebre costureiro do Porto que já se dedicava à alta-costura em França, casou com uma francesa, alistou-se na Legião Francesa, foi capturado e, no campo de concentração, começou a fazer fatos para as mulheres dos oficiais nazis e eles libertaram-no antes do fim da guerra e ele veio para a Portugal, onde abriu uma casa de alta-costura na Avenida da Boavista, no Porto, que, durante os anos 50 do século XX, tornou-se muito conhecida”.
Nesta fase do trabalho, os números “são conservadores”, mas Fernando Rosas admite que passaram, “seguramente, mais de 400 portugueses” pelo sistema concentracionário nazi.
E ali morreram. A lista de mortos ainda também é provisória, mas, até agora, “encontramos mais de 20 portugueses que morreram nos campos de concentração e cujos nomes não deixam dúvida”.
O fim do mundo. O início do outro
O objetivo das exposições sobre os “Trabalhadores forçados portugueses no III Reich” é reunir um conjunto de histórias e aspetos que a sociedade portuguesa desconhece, na sua larga maioria.
Um desconhecimento ainda mais flagrante entre os jovens em idade escolar para quem a II Guerra Mundial é um acontecimento muito distante no tempo e que cuja abordagem é excessivamente centrada na perseguição nazi aos judeus e a outras minorias.
Para Fernando Rosas, “a II Guerra Mundial é, só, o fim do mundo e o início do outro e a matança industrializada, que eu espero que nunca mais se repita, não deixa ninguém indiferente e é preciso que os nossos jovens saibam que isto aconteceu. E a melhor maneira de evitar que isso algum dia se possa repetir é saber que aconteceu e como aconteceu, tomando contacto com essa experiência absolutamente marcante do século XX e da nossa História contemporânea em geral”.
Daí que, para o investigador que coordena o grupo de trabalho do IHC que estuda a vida dos portugueses que sofreram atrocidades às mãos do regime nazi, “este trabalho não é só mandar as exposições aos sítios. É mandar a exposição, fazer palestras nas escolas, sensibilizar os professores e, se possível, obter o apoio da câmara para deslocar os alunos aos campos de concentração. É uma experiência única na vida deles, porque ficamos perante o clímax da barbárie e da resistência. É esse trabalho que vamos, agora, fazer em Famalicão”.
A exposição “Trabalhadores forçados portugueses no III Reich e os Famalicenses no Sistema Concentracionário Nazi" abre portas este domingo às 14h30 e estará patente até ao dia 19 de dezembro, na Casa do Território, em Famalicão.