O autoproclamado Estado Islâmico (Daesh) sofreu pesadas derrotas na Síria e no Iraque, em particular no último ano, mas nem por isso a Europa deixou de estar sob alerta.
França, por exemplo, anunciou recentemente uma nova suspensão do Acordo de Schengen entre abril e outubro, na prática repondo o controlo de fronteiras precisamente por causa da ameaça terrorista.
Em junho completa-se um ano desde que a cidade de Mossul, no Iraque, foi reconquistada pelo Exército do país. De lá para cá, todos os outros bastiões do grupo terrorista foram caindo às mãos das várias forças internacionais e regionais que combatem o Daesh na Síria e no Iraque.
O pretenso califado já não controla partes significativas das províncias do Leste da Síria nem do Norte do Iraque, já não domina o destino de mais de nove milhões de pessoas em cidades como Raqqa, Mossul, Deir ez-Zor, Faluja, Idlib e Alepo.
Contudo, e como se tem percebido, isso não tem sido suficiente para travar os atentados em solo europeu.
Daesh digital
A organização perdeu a sua componente territorial, mas está a reestruturar-se e promete continuar a espalhar o terror. Face a isto, surgem várias questões: o que é atualmente o Daesh? Onde estão os seus dirigentes e os combatentes que sobreviveram às batalhas que os expulsaram de grande parte dos territórios do Iraque e da Síria? Que capacidade tem agora este grupo de planear e executar ataques? E que ameaça constitui para a Europa e, em particular, para Portugal?
"O Daesh não acabou, está a fazer uma metamorfose dupla", responde Luís Tomé, adjunto da ex-ministra da Administração Interna para as Relações Internacionais e o Combate ao Terrorismo entre 2015 e 2017. "Por um lado está a tirar partido de grupos filiados no califado e nas províncias que tinha criado e reconhecido no tempo da sua expansão máxima", explica. "Por outro lado, há uma metamorfose no sentido de deixar de pretender ser uma entidade territorial para passar a ser uma organização mais do tipo da Al-Qaeda."
A opinião é partilhada por Henrique Cymerman, jornalista, professor e conferencista que cobre assuntos do Médio Oriente há quase 30 anos e que acabou de lançar o livro "O terror entre nós", precisamente sobre o atual momento que o Daesh atravessa.
"O Daesh não acabou", repete o especialista. "Foi vencido no Iraque e na Síria, calcula-se que tenha perdido 50 mil pessoas, mas foi simplesmente expulso, entrando noutros lugares no Médio Oriente. Eu sei que há centenas de homens do Daesh que chegaram ao Sinai, no Egito, que estão na Líbia, sobretudo na zona costeira, que estão no Iémen e até que há alguns que, segundo o que os próprios homens do Daesh, presos do Daesh, me disseram, estão em células por toda a Europa, pelos Estados Unidos e também no triângulo de fronteiras da América Latina, entre o Brasil, a Argentina e o Paraguai, onde há uma população muçulmana muito ampla. É lá que eles se escondem, provavelmente entre esta população."
Nas conversas com esses combatentes detidos, Cymerman perguntou-lhes o que pretendem fazer agora. A resposta, pelo menos em parte, introduz a nova dimensão de força do Daesh, aquilo a que estes homens chamam de "califado digital". "Eles produzem muitos artigos que estão nas redes sociais e na internet, canais que continuam a usar para dispersar a sua guerra psicológica pelo Médio Oriente e pelo mundo, e o que dizem é: ‘Mesmo no dia em que nós já cá não estivermos, toda essa herança vai ficar para outros grupos que vão surgir no futuro'."
Vai piorar antes de ficar melhor?
Luís Tomé acha que sim. "Basta pensar que se duas ou três centenas de regressados estiverem motivados para fazer alguma coisa, causarão tragédias em larga escala", sublinha o investigador das áreas de geopolítica, geoeconomia e segurança internacional. "Por outro lado", ressalta, "há um outro perigo decorrente desta hemorragia de jiadistas afetos ao Daesh que saíram do Iraque e da Síria, que é o de instigarem ainda mais conflitualidade noutros cenários".
É uma ideia que remete para a opinião de Henrique Cymerman, sobre os locais onde vários combatentes do grupo já se instalaram desde as derrotas sofridas no dito califado que pretendia reunir a Síria e o Iraque. "Andamos há anos a tentar estabilizar países como a Líbia, temos a guerra civil no Iémen, temos um Líbano instável e muitas destas pessoas com experiência em combate e completamente radicalizados vão tentar replicar aquilo que foi o caos na síria nesses cenários de conflito. Esse é outro perigo para a Europa, porque estamos a falar aqui da nossa periferia."
Nesse contexto, Luís Tomé diz não ter dúvidas de que cada elemento que se identifica com o Daesh vai continuar a tentar espalhar o terror, idealmente com "um avião cheio de combustível e de pessoas" ou com uma "arma química para matar o maior número possível de pessoas". À falta disso, continuarão a recorrer a facas ou a carros como se assistiu numa série de ataques recentes na Europa, nomeadamente no Reino Unido e em França. "Estou em crer que eles o vão continuar a fazer", sublinha o analista.
Novos horizontes
Neste momento haverá dezenas de milhares de seguidores do Daesh espalhados pelos vários países por onde se têm movimentado, segundo contas citadas por Henrique Cymerman, e algumas centenas deles já estarão de volta ao continente europeu.
"O número de que se fala nos serviços de segurança europeus e norte-americanos é 35 mil homens e mulheres estrangeiros que se uniram ao Daesh nestes últimos quatro anos", explica. "Muitos deles morreram, outros voltaram para a Europa. Sei que há centenas de pessoas que voltaram para a Alemanha, para a Bélgica, para a França, e um dos grandes problemas dos serviços de segurança é o que fazer com estas pessoas. Alguns dizem que depois de verem o que o Daesh fez se tornaram anti-Daesh, dizem-se enganados pelo grupo. Mas será sincero? Haverá outros que, provavelmente, continuam a integrar o Daesh estando sediados na Europa e essas células podem ser muito perigosas."
Aqui, Luís Tomé ressalta os riscos de Portugal vir a estar na mira de potenciais ataques, em parte por causa da súbita popularidade de Portugal no mundo inteiro. Como explica o investigador, o nosso país já não se limita a ser apenas um dos Estados-membros da União Europeia, da NATO e até da coligação anti-Daesh.
"Somos o país de origem do secretário-geral da ONU, somos campeões europeus de futebol e de futsal, podemos vir a ser campeões do mundo, organizamos bastantes eventos e, em particular com a cidade de Lisboa, somos cada vez mais uma atração turística. No passado podia haver quem não considerasse Portugal um alvo particularmente mediático que justificasse o risco de um pequeno grupo ou uma célula radicalizada aqui penetrar, mas hoje isso pode já não ser assim e Portugal precisa de se manter vigilante."
Ainda assim, o ex-adjunto do MAI ressalta que "a maior ameaça" hoje representada pelo Daesh pode não se prender com os que já cá estão. "Apesar de tudo, o que é originário daqui está relativamente controlado. A maior ameaça pode advir da facilidade com que pessoas de outros países europeus circulam no continente europeu."
Voltamos ao início, à decisão de França voltar a suspender as regras do Espaço Schengen, que permitem a mobilidade total de cidadãos europeus dentro dos 26 países que integram essa área comum. A isso e também ao facto de os próprios líderes do Daesh incentivarem ações consideradas pequenas quando comparadas com grandes atentados da História moderna, mas que ainda assim servem para espalhar o pânico entre as populações.
Como refere Henrique Cymerman: "Os líderes deles dizem que não é possível fazer atentados como o 11 de setembro de 2001 todos os anos, que isso é muito complicado, portanto dizem-lhes que peguem nas facas de cozinha das casas das mães, que peguem nas chaves dos carros dos pais - se houver camiões melhor - e que, dessa forma, vão matar infiéis todos os dias, em todos os lugares."
Luís Tomé sublinha, sobre isto, que no geral as ameaças hoje "quase provêm da nossa imaginação", sobretudo por não se saber quando ou como ocorrerá o próximo ataque. De certa forma, é esse o grande motivo do Daesh para cantar vitória apesar do terreno que tem vindo a perder no Iraque e na Síria. E que se desengane quem julga que o grupo ficou cingido ao recrutamento e à disseminação da sua ideologia online.
"Eles não renunciaram à dimensão territorial", ressalta Cymerman. "Dizem que vão utilizar todo o vazio político em zonas como a Líbia, o Afeganistão ou o Sinai e até falam da Indonésia e da Malásia", aponta o autor de "O terror entre nós". Sem o califado original, o grupo tenderá a expandir-se para qualquer sítio "onde possa haver algum tipo de vazio político" para ocupar. "O lugar onde for mais fácil criar o futuro Estado Islâmico será onde o vão fazer também", vaticina o jornalista.