Misturar vacinas da Pfizer e AstraZeneca provoca forte resposta imunitária
29-06-2021 - 06:49
 • Hélio Carvalho

Para Miguel Prudêncio, imunologista do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa, o cruzamento de vacinas diferentes permitirá uma melhor gestão dos "stocks". Eficácia da vacina da Janssen, de dose única, no combate à variante Delta questionada. Possibilidade de cruzamento com outra marca está a ser estudada.

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Um estudo britânico apresentado na segunda-feira demonstrou que a mistura de vacinas BioNTech/Pfizer e AstraZeneca pode provocar uma resposta imunitária mais forte contra a Covid-19, mesmo tratando-se de vacinas diferentes de uma dose para outra.

Os 830 voluntários receberam uma de quatro combinações: o plano normal de duas doses da vacina da AstraZeneca; duas doses da BioNTech/Pfizer; uma dose de AstraZeneca, seguida de uma dose de BioNTech/Pfizer; e uma dose da BioNTech/Pfizer, seguida da segunda dose da vacina da AstraZeneca.

Os resultados do estudo, publicado na revista The Lancet, demonstram que quem foi vacinado com duas doses da vacina da Pfizer teve uma presença de anticorpos dez vez mais significativa do que quem foi vacinado apenas com a vacina da AstraZeneca. Quem recebeu uma dose da vacina da Pfizer, seguida da dose de AstraZeneca, teve uma resposta cinco vezes superior a quem tomou apenas a vacina da AstraZeneca. E quem foi vacinado com uma dose de AstraZeneca, para depois receber uma segunda dose da vacina da Pfizer, teve uma resposta tão forte como quem recebeu duas doses da Pfizer.

O estudo também concluiu que misturar vacinas provoca uma produção de um maior nível de células imunes, que previnem a infeção contra o novo coronavírus.

Resta ainda saber o impacto de uma vacinação com duas doses da AstraZeneca com 12 semanas de distância, esperando-se uma presença de anticorpos mais significativa.

Os únicos efeitos secundários registados entre pessoas com doses de vacinas diferentes foram uma maior probabilidade de febre, dores de cabeça e dores musculares do que as pessoas vacinadas com duas doses da mesma vacina. Mas, o estudo realça, os efeitos são rapidamente dissipados.

Para o imunologista Miguel Prudêncio, do Instituto de Medicina Molecular (IMM) da Universidade de Lisboa, o estudo veio trazer "boas notícias" e a certeza de que misturar vacinas é uma abordagem eficaz a ter em conta.

"São boas notícias porque permite obviar a questão da segunda dose para quem, tendo menos de 60 anos, recebeu a AstraZeneca em primeira dose e agora não poderia voltar a receber a mesma vacina. São boas notícias porque permite, porventura, flexibilizar mais e gerir melhor os 'stocks' das diferentes vacinas, de maneira a maximizar o número de pessoas vacinadas", diz à Renascença o cientista.

Miguel Prudêncio explica que do ponto de vista da biologia e da imunologia, "não havia nada que nos fizesse pensar que essa combinação poderia não ser eficaz."

"Estas vacinas, embora recorram a tecnologias diferentes – a AstraZeneca e a Janssen são vacinas de vetor viral e as vacinas da BioNTech/Pfizer e da Moderna são vacinas de mRNA –, têm todas uma coisa em comum: todas elas utilizam a mesma proteína do vírus como agente de imunização contra a qual o nosso sistema imunitário vai montar uma resposta. E sendo a proteína a mesma não havia nada que nos fizesse crer que a combinação de vacinas de tipos diferentes pudesse ser desvantajosa", refere.

O imunologista vinca que o estudo confirma as ideias geradas quando algumas vacinas foram limitadas a certas faixas etárias, especialmente em torno da eficácia da vacina da AstraZeneca em faixas mais jovens.

"Estes estudos mostraram é que a resposta imunitária é pelo menos tão elevada, tão robusta, quando se combinam dois tipos de vacina diferentes como quando as duas doses são da mesma vacina. Isto está de acordo com aquilo que era a expectativa que nós tínhamos, que esta combinação não seria prejudicial e agora, com dados de ensaios realizados em que foram combinadas em momentos diferentes, uma primeira dose de uma vacina e uma segunda dose de outra vacina, verificou-se que, efetivamente, a resposta imunitária é pelo menos tão boa, senão superior, àquela que se obtém quando as duas doses são da mesma vacina, do mesmo fabricante e do mesmo tipo", explicou o cientista.

Plano português não precisa de misturas

Em Portugal, a prática de misturar doses de vacinas diferentes foi implementada depois de a vacina da AstraZeneca deixar de ser recomendada a menores de 60 anos. Pessoas que foram vacinadas com uma dose de AstraZeneca podem ser vacinadas com uma segunda dose da BioNTech/Pfizer ou da Moderna.

Mesmo com o objetivo da "task force" que coordena o plano de vacinação contra a Covid-19 de vacinar 70% da população até ao início de agosto, Miguel Prudêncio não acredita que os resultados do estudo tenham consequências diretas no plano português.

"Eu não julgo que tenhamos de recorrer a essa combinação para atingir esse objetivo. O que eu digo é que essa possibilidade pode permitir para, no futuro, jogar com as diferentes vacinas para maximizar o número de pessoas imunizadas. Mas aquilo que está a acontecer em Portugal, como na generalidade dos países, é que os esquemas vacinais estão planeados com duas doses da mesma vacina", salienta.

O único impacto que estes resultados têm é corroborar a utilização de diferentes vacinas com a primeira dose da AstraZeneca. Assim, o imunologista não acredita que se passe a misturar vacinas a bel-prazer.

"O que eu acho é que o facto de se saber que isso é possível pode, para o futuro, permitir gerir 'stocks' de outra forma, mas não estou em crer que se torne a regra e não estou em crer que afete os objetivos que estão traçados pela 'task force' de vacinar cerca de 70% das pessoas até ao início de agosto", conclui.

Vacina da Janssen fica à espera, para já

Do outro lado do Atlântico, especialistas americanos receiam que a eficácia da vacina desenvolvida pela Janssen, da Johnson & Johnson, não seja tão robusta no combate à variante Delta – apesar de estudos terem provado que as vacinas da BioNTech/Pfizer e da AstraZeneca são eficazes contra esta estirpe do SARS-CoV-2.

Segundo a agência Reuters, a hipótese de misturar uma primeira dose da vacina de dose única da Janssen com outra vacina está a ser estudada. Para Miguel Prudêncio, a ideia "tem os seus méritos e deve ser avaliada com dados concretos que, neste momento, ainda não existem."

"Não existem dados de combinação entre a vacina da Janssen e vacinas de RNA, como as da BioNTech/Pfizer ou da Moderna, embora existam dados que mostram que combinar a da AstraZeneca, que tal como a da Janssen é de vetor viral, com essas vacinas de RNA não tem qualquer problema", explica o imunologista.

De acordo com a lógica apresentada pelo investigador do IMM, a vacina da Janssen poderá, em princípio, ser misturada para obter um reforço da resposta. Se é mais eficaz contra a variante Delta, não se sabe, mas em princípio não será prejudicial.

"Tudo leva a crer que a combinação da vacina da Janssen com uma vacina de RNA também vai funcionar bem. Se se chegar à conclusão que a proteção conferida pela dose única da Janssen contra a variante Delta fica aquém do esperado, então penso que há todas as razões para equacionar uma segunda dose de uma vacina de RNA para quem teve a vacina da Janssen em dose única", conclui o especialista.