Será que se pode conseguir um excelente resultado económico, apontar para o crescimento mais alto das últimas décadas, reduzir o défice e o desemprego, ter uma inflação abaixo de 1%, anunciar para o próximo ano um aumento do investimento da ordem dos 30%, prometer a manutenção e, nalguns casos, mesmo, a descida da carga fiscal, anunciar com meses de antecedência um aumento extraordinário de 10 euros nas pensões e, ainda assim, inconseguir? Pode.
Pelo que já sabemos do Orçamento, e olhando só para o quadro macroeconómico, podemos mesmo temer um João Leão melhor do que o mestre Centeno nessa dura arte do inconseguimento.
O ano de 2022 não é seguro que vá ser melhor, nem sequer suficientemente bom para o que se exigiria. Disso podemos estar seguros. Mas terá, certamente, alguns dos indicadores mais invejáveis.
Os números não falam por si. As percentagens mentem. Retenham nas vossas cabeças que um crescimento de 100% de zero continua a ser zero. Agora já poderão ler o Orçamento e perceber como, sem mentir, Costa e Catarina terão, no mesmo debate, e no mesmo namoro, ambos razão.
Jerónimo, provavelmente, terá, ainda, um bocadinho mais, porque gosta de escarafunchar na ferida, devido à sua idade provecta, e de já andar há anos e anos a ouvir as mesmas promessas, vindas da esquerda à direita, sem ninguém se preocupar em prestar contas ou sequer cumprir.
A bem da transparência, temos agora o CFP, e a UTAO a desmascarar tropelias financistas que ninguém, em bom rigor, está interessado em mudar.
Para cada alçapão encontrado, surge uma narrativa boazinha: vamos tomar em atenção e continuaremos a dar a menor informação possível. E aqui radicará o maior dos problemas; os reguladores existem para regular apenas o que vão conhecendo, em tempo, mediante informações tiradas a ferros. Um país a marcar passo, a sonhar em cada ano fazer o prometido no ano passado. Agarrado a um “agora é que vai ser!” sem nada a sustentá-lo.
Como a canção dos Deolinda temos o velho PS a garantir pela voz de Costa quatro anos atrasado: “Agora sim, damos a volta a isto (com o PRR) / agora sim, há pernas para andar/ agora sim eu sinto o otimismo/ agora sim, vamos em frente, ninguém nos vai parar!”.
Esta é a parte segura, não se prevendo nenhuma revolução e, sem oposição, o tapete vermelho chegará até 2023 se o próprio PS não lho puxar.
Não que Moedas não tenha ganho suficiente lastro para transformar a capital num trunfo que possa ser “o começo”, mas seja como for, sozinho não vai longe. E fatalmente irá devagar.
Assim, o povo, ao ouvir o seu primeiro-ministro “irritadiço” sempre que o chamam à atenção, na sua proverbial bonomia, só pode antecipar o coro, atrás do pano, dos mesmos cantores de sempre, os ministros eternamente remodeláveis, no rame-rame habitual.
Volto a parafrasear a canção: “Agora não que é hora do almoço (e Bruxelas ainda não deu o aval). Agora não que é hora do jantar (e isto ainda tem de passar no Tribunal de Contas…). Agora não eu acho que não posso (sem o Leão descativar a verba…). Amanhã vou trabalhar (contrato mais um estudo, corto mais uma fita, ou chamo um almirante para tirar um selfie enquanto ele põe a máquina a funcionar…)”.
E os empresários, os investidores, os jovens, as famílias, a oposição (pós-geringonceira) toda e em peso, do PSD virtual ao CDS virtuoso. Dos liberais intervencionistas até chegar ao Chega, dando a volta pelo Volt, acabarão conformados ao refrão: “agora não que falta um impresso/ agora não que o meu pai não quer (e eu vivo em casa dele, até à minha reforma…). Agora não que há engarrafamentos (e até mudarem as ciclovias, só se for de skate). Vão sem mim que eu vou lá ter (com sorte candidato-me no próximo congresso a líder e a onda pode mudar a meu favor)”. Vão sem mim que eu vou lá ter”. Quem sabe Rio se revê neste final do refrão.
E o resto? Nada. Na justiça, ficámos conversados. Rendeiro fugiu. Salgado enlouqueceu. O juiz negacionista só agora viu negado o poder de mandar gente para a cadeia. Sócrates foi a banhos para a Ericeira e não está a banhos noutros mares porque não lhe apetece. Os advogados de acusação e defesa são os mesmos de sempre e, para cúmulo, existem os que conseguem estar em simultâneo de um lado e outro da mesma barricada. Uma vez defendem a caça, na seguinte o caçador. Isto enquanto não acabam caçados. Ninguém se rala.
Embalados pelo PowerPoint, os portugueses estiveram, até agora, anestesiados pelos pactos partidários ou simplesmente contagiados pela narrativa otimista do virar da página.
O ano passado foi a pandemia, este ano a vacinação, mas no próximo, com tanta esperança semeada, talvez possa vir o ano da cobrança de promessas. Nessa hipótese improvável, os cobradores de fraque e fato de macaco podem querer também mudar a página: encher as ruas e bloquear rotundas, movidos pelos chamados “movimentos inorgânicos” apenas porque ficaram subitamente fartos. E não digam que não foram avisados.
Pode acontecer de tudo, mas nem a ministra da Saúde pode voltar a ir ao colo das Forças Armadas, nem Marcelo voltará a abrir o guarda-chuva para proteger Costa.
O famoso PRR é precioso demais para se desperdiçar sem remoques presidenciais. Nem João Leão vai voltar a passar pelos pingos da chuva.
Esta semana foram os médicos do hospital de Setúbal a desmascarar-lhe a careca: há verbas que estão inscritas nos últimos quatro orçamentos e nunca foram executadas. Há promessas de reforço de instalações garantidas nos últimos quatro planos de investimento, um quadro de pessoal à míngua há quase uma década e já ninguém acredita que os retoques através das empresas de fornecimento de serviços anunciados pela ministra (encostada à parede) sirvam para alguma coisa.
Depois de 87 médicos, em coro, gritarem basta, Marta Temido tentou, abespinhada, virar o feitiço contra o feiticeiro e só lhe ocorreu onde faltam dezenas de médicos (23 num único serviço) autorizar, de imediato, a contratação de dez (10!) e pré-anunciar outros oito (8!) para as próximas semanas. Meio médico por vaga a preencher, como diria mais tarde um dos clínicos chamados a comentar o caso.
Com este penso rápido de contratações, a ministra da Saúde ainda apertou o garrote à liberdade de expressão dos clínicos demissionários ameaçando os contestatários, aconselhando-os a ter “um especial cuidado porque a nova lei de bases da saúde” impõe “adicionais éticos e deontológicos” ao dever de preservar “a confiança dos utentes no Serviço Nacional de Saúde” (cito de memória).
Apetece ripostar: calar a verdade e assegurar confiança em serviços que não sejam confiáveis é um novo dever ético e deontológico? Não será exatamente o oposto? É difícil encontrar uma leitura mais absurda da chamada ética republicana.
Mas há mais: não é só o hospital de Setúbal onde se quer, no mínimo, colocar uma barreira à fuga certa para o privado dos internos formados nas mais diversas especialidades além de substituir os médicos à beira da reforma. Todo o sistema ameaça colapsar ao sofrer do mesmo mal.
Os jovens não querem apenas salários mais altos. Querem outras condições de trabalho: acesso a novas tecnologias; material de diagnóstico de ponta e sobretudo oportunidades de carreira, capazes de garantir a melhor formação permanente e o melhor serviço prestado ao doente. Quanto aos mestres (os que não estão dispostos a ficar à beira da reforma no SNS) já estão no privado prontos a prestar-lhes a formação de qualidade que o público há muito deixou de lhes poder dar em exclusividade.
Os jovens médicos reivindicam o direito de poder aceder a melhores condições e perspetivas de carreira, antes de se transformarem em meros escriturários visitadores de doentes amontoados nas macas pelos corredores, sem tempo para os seguir e acompanhar. Trabalhadores altamente qualificados, mas que o sistema público não apenas desrespeita como sobretudo descarta depois das promessas feitas ano após ano e sempre incumpridas, ora por falta de “cabimento orçamental “, ora pela complexidade da contratação pública, num longo processo que parece feito para não se concretizar nunca ou, pelo menos, ocorrer o mais tarde possível.
Na saúde é assim. No setor empresarial do Estado, Pedro Nuno Santos fez o favor de confirmar que os melhores gestores desaparecem não por não vestirem a camisola, não por estarem excessivamente mal pagos, não por não existirem dos melhores, mas porque até esses (parece ser o caso da CP) se verem esmagados pela burocracia e alvo de vetos de gaveta (que no fundo não passam da velha política das cativações que Mário Centeno usou com especial sucesso), travando qualquer ato de gestão do mais complexo ao mais rotineiro, “nem rodas se conseguem comprar”.
E tudo isto se passou no silêncio uma legislatura e meia. Mas o sistema parece agora romper pelas costuras, no exato momento em que mais necessário era que se tivesse mantido nos mínimos, mas a funcionar.
Vamos aos números: Na área euro o produto caiu, o ano passado, 6,5% e vai recuperar já este ano 5%, colocando-se ao nível pré-pandemia. Por cá só em 2022 atingiremos a meta. Pior: este ano vamos crescer 4,6 %, após um rombo de 8,4 % no ano passado. Depois de cair tão fundo, uma subida na ordem dos 4,6 ou mesmo 4,8 % é histórica, mas vale o que vale e já não parece óbvio como conseguiremos a partir de uma base superior, já em 2022, alcançar uns muito mais difíceis 5,5 % de crescimento, embora seguidos logo, em 2023, por um abrandamento significativo voltando ao habitual rame-rame de um crescimento de “apenas” 3,2 %.
Por outro lado, o BP avisa que o nosso tecido empresarial está longe de ter passado pelo pior. Depois de ajudado (e bem!) durante o pico da crise não é garantido que não venhamos a assistir a uma nova onda de falências de empresas que, entretanto, se vão tornando, face à descapitalização sofrida, irrecuperáveis.
Em matéria de emprego o resultado foi excelente com uma redução para níveis pré-pandemia, mas vendo que na origem do novo emprego sobressai quase exclusivamente a contratação pública coloca-se a questão de saber como manter a partir daqui a mesma dinâmica. E para quando a criação de emprego privado gerado pela retoma?
Por último, em matéria de investimento, muito ajudados pela Europa as metas orçamentais foram este ano razoavelmente cumpridas, mas estamos a falar de valores ainda muito baixos e incapazes de alavancar o investimento privado que nos falta como pão para a boca. O disparo de 30 % no investimento público explica-se principalmente pelo programa europeu da “escola digital”. Sem pandemia a despesa pública sem juros estava a rondar os 40 % do produto e, no primeiro semestre deste ano, já superava os 44 %. E ainda falta o monstro da dívida que se em 2019 já não estava controlado deu agora um salto para 135 e se quer fazer descer para 123 % em 2022. Como? Há por aí alguém que saiba? O que nos vai fazer crescer? Mais poder de compra? Claro, mas não chega.
O modelo de crescimento em torno das exportações, baseadas sobretudo no turismo, continua em causa e sem alternativa à vista. Em 2020 a queda foi de 37,2 % na exportação de serviços e, este ano, apenas recuperamos 7 %. Quanto à base da cadeia exportadora de bens também estamos esclarecidos: têxteis e calçado, automóveis e combustíveis constituem, como sempre, mais de um terço da balança.
Contais feitas pelo Banco de Portugal o défice de 4,5 % previstos para 2021 será muito provavelmente conseguido, de novo o famoso número mágico de três mais décima menos décima. Resumindo: a nossa economia e o nosso futuro continuam um bonito molho de brócolos. Haja saúde.