O presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), Pedro Vaz Patto, critica o Presidente da República por causa das intervenções que tem tido sobre a questão dos abusos no seio da Igreja.
"Está continuamente a fazer comentários sobre matérias que não são do âmbito das suas competências", diz Vaz Patto diz, em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia.
A declaração do juiz que preside à CNJP surgiu na resposta a uma pergunta sobre o que se pode esperar de Marcelo Rebelo de Sousa em relação à lei da eutanásia, ponto em que Vaz Patto defende o recurso ao veto político: “Acho que é uma tomada de posição que eu espero que o Presidente da República assuma porque sabemos o que ele pensa sobre o assunto."
Sobre a questão dos abusos sexuais na Igreja Católica, o juiz desembargador afirma ser “necessário gestos concretos que demonstrem que hoje não existe uma perspetiva de defesa corporativa da imagem da Igreja".
Ainda assim, o presidente da CNJP afirma que o facto de uma diocese não promover o imediato afastamento cautelar de um sacerdote que integra a lista da Comissão Independente não pode ser visto como encobrimento. “Isso é uma conclusão precipitada”, argumenta.
Pedro Vaz Patto diz compreender que “se exijam mais elementos, quando o único elemento que existe é o nome da pessoa numa lista fornecida pela Comissão independente” e alerta também para o facto de que "quando uma pessoa é suspensa, toda a gente fica a saber o motivo”, ficando "com uma mancha na sua reputação que dificilmente será afastada”, mesmo que se prove a inocência.
Noutro plano, Pedro Vaz Patto volta a defender a ideia de que a Igreja deve indemnizar as vítimas de abusos. "A questão deve situar-se num plano moral, porque há um dever de solidariedade para com estas pessoas”, defende.
A Comissão Nacional Justiça e Paz publicou uma nota, na qual apela a uma ação “imperativa” em nome da justiça e da reparação da paz para as vítimas de abusos. Por onde passa essa ação?
É a primeira vez que a Comissão Nacional Justiça e Paz aborda este tema, mas, sem dúvida, entra no âmbito das suas competências. Está em causa uma questão de justiça e também, de alguma maneira, de paz, uma paz que se pretende restabelecer entre as vítimas e a própria Igreja. Uma reconciliação, digamos assim.
Nesta nossa nota, fazemos referência a uma afirmação do Papa, muito recente, no âmbito das intenções de oração para este mês de março, na qual diz que não basta pedir perdão: é necessário, mas não suficiente. Portanto, tem de haver gestos concretos no sentido do apoio às vítimas destes abusos.
Temos de reconhecer - e nem sempre isso tem sido reconhecido, no meio de tantas críticas à Conferência Episcopal - que, logo após a publicação do relatório da Comissão Independente, foi afirmado que a Igreja garantiria o apoio psicoterapêutico a todas as vítimas, independentemente da questão jurídica. A coordenação nacional das comissões diocesanas até manifestou a disponibilidade de um grupo de psicólogos em colaborar neste apoio, que é talvez a forma mais adequada de minorar os danos provocados por estes crimes.
Depois, coloca-se a questão das indemnizações. Também já o afirmei - na mesma lógica que leva a que se garanta este apoio psicoterapêutico, independentemente da responsabilização jurídica - que a questão da responsabilização jurídica também suscita algumas dúvidas. As questões podem não ser uniformes em relação a todos os casos. Não se pode dizer que há responsabilidade jurídica sempre e também não se pode dizer que nunca há responsabilidade jurídica, da parte institucional.
Este é um debate que está, obviamente, centrado no plano jurídico e até nos modelos de responsabilidade, que são diferentes em Portugal ou nos Estados Unidos da América, por exemplo. Mas há aqui um plano moral, também, de que tem falado...
Sim. No plano jurídico, nós podemos discutir até que ponto é que há uma responsabilidade da própria instituição. Isso dependerá da questão de saber se houve alguma culpa da parte da hierarquia, quando teve conhecimento dos casos, se não atuou e, por esse motivo, eles se repetiram. Não terá sucedido assim sempre, alguns destes casos só agora é que são conhecidos, só agora é que as pessoas apresentam queixa e, até, revelam os factos a qualquer outra pessoa.
Se fossemos discutir esta questão no plano jurídico, seria muito complexo, não seria a forma de estabelecer esta reconciliação entre as vítimas e a Igreja. Ou, pelo menos, tentar. A Igreja não pode impor esta reconciliação, tem de respeitar aquelas pessoas que, de facto, continuam revoltadas com a forma como foram tratadas, mas, na medida do possível, deve dar alguns passos no sentido de restabelecer este este relacionamento.
Se fossemos para esse âmbito do judicial, seria muito penoso para as vítimas, antes de mais. Mas para a própria Igreja também seria.
Nessa perspetiva, a Igreja deveria ter logo deixado essa ideia, essa mensagem de que aceitaria indemnizar as vítimas?
Eu acho que sim, já o disse e também devo reconhecer que já houve declarações de alguns senhores bispos contrárias àquela declaração inicial de que a questão dependeria sempre do próprio abusador, que a responsabilidade seria apenas do abusador. Ora, isto não se verifica nesta grande percentagem de casos em que ele já faleceu, não é? Portanto, ficariam afastadas essas possibilidades. Também em muitas situações, as possibilidades económicas do abusador não contemplam a possibilidade de reparar de uma forma significativa as vítimas. Acho que a questão deve situar-se num plano moral, porque há um dever de solidariedade para com estas pessoas.
Não é exatamente da mesma forma que há um dever de solidariedade para com quaisquer vítimas de guerras, por exemplo, mesmo que não haja culpa nenhuma - e a Igreja muito tem feito para apoiar refugiados, etc. -, é mais do que isso, porque temos de ver que estas pessoas, por um lado, devem ser reconhecidas como filhos e filhas da Igreja. São parte da Igreja do Senhor. O sofrimento das vítimas é um sofrimento da Igreja, são tão parte da Igreja, são tão parte do corpo da Igreja como são os bispos e os sacerdotes, é importante ter esta consciência.
O seu sofrimento vem precisamente de algo que aconteceu no âmbito daquela comunidade, daquele local, onde deveriam sentir-se ajudadas no seu pleno desenvolvimento, no desenvolvimento integral como pessoas. Foi exatamente o contrário que sucedeu. Daí, que haja este particular dever solidariedade, que também se traduz nesta forma de apoio. Não se trata de conceder um preço ao sofrimento. Este é um dano que se procura indemnizar, não no sentido de que, com o dinheiro, se afasta o sofrimento. Não é essa, não pode ser essa a finalidade. A indemnização situa-se entre, por um lado, um valor que seja significativo, que não seja meramente simbólico, que possa de alguma maneira, compensar o sofrimento através do acesso à possibilidade de satisfazer outras necessidades, que o dinheiro permite, mas sem a pretensão de, dessa forma, cobrir e anular o sofrimento, porque isso nunca seria possível, por muito elevada que fosse a indemnização.
Como tem visto as diversas respostas dos bispos diocesanos na análise à célebre lista da Comissão Independente? O ruído gerado é aceitável?
Eu acho que há aqui algum equívoco que deve ser esclarecido. Não é pelo facto de uma diocese não ter, de imediato, proibido ou afastado um sacerdote da prática do ministério sacerdotal, como medida cautelar, que podemos concluir que há alguma tentativa de encobrimento, como terá havido no passado. Isso é uma conclusão precipitada e aqui há duas coisas a esclarecer. Gerou-se uma confusão sobre o que é uma medida cautelar, provisória, como no processo penal do Estado se verifica com as medidas de coação - no caso mais grave, a prisão preventiva. Estas medidas não supõem uma prova definitiva e, portanto, há que distinguir a condenação numa pena e a aplicação de medidas cautelares.
A aplicação das penas depende de uma intervenção da Santa Sé e a aplicação destas medidas cautelares não depende, podem ser aplicadas já.
Decisões diferentes dos bispos diante, naturalmente, de situações diferentes, também terão provocado esse ruído?
Precisamente, é bom ter em consideração o que levou a que não se aplicasse de imediato esta medida. O facto de ser uma medida de cautelar e não uma pena também não significa que não tenha de haver uma análise mínima de indícios. Tem de haver indícios mínimos de que, verdadeiramente, estamos perante um crime desta natureza.
A justificação para a aplicação desta medida está definida na legislação canónica: pode haver perigo de continuação da atividade criminosa, pode haver necessidade de evitar o escândalo, pode haver necessidade de evitar a perturbação da investigação. É uma destas situações que justifica a aplicação da medida.
A necessidade de evitar o escândalo neste caso, por exemplo, não poderia ter justificado que, até com sofrimento das partes envolvidas, se tivesse decidido logo o afastamento temporário das pessoas identificadas, enquanto decorressem averiguações?
Eu acho que não, sinceramente, acho que não. Se calhar, sou influenciado pela minha prática profissional, que são as medidas de coação no processo penal. Nunca, isso nem a lei o permite, se pode aplicar uma medida de coação no processo penal sem haver um mínimo de indícios.
Também aqui acho que é bom esclarecer uma coisa: não se deve contrapor a necessidade de proteção da vítima com a necessidade de garantir as exigências mínimas de um processo penal equitativo, com garantias de defesa. Não é uma questão de legalismo, tenho ouvido falar de legalismo, a respeito desta questão: as garantias da defesa num processo penal, seja no âmbito canónico seja no âmbito civil, são algo que é um direito fundamental reconhecido nas declarações universais de direitos fundamentais, reconhecido na Constituição portuguesa.
É uma medida cautelar, é verdade, mas mesmo assim não é completamente inócua, sobretudo, porque, neste contexto, é difícil manter a situação em sigilo. Portanto, a pessoa é suspensa e toda a gente ficará a saber qual o motivo. Mesmo que ela depois venha a ser absolvida, fica com uma mancha na sua reputação que dificilmente será afastada.
Nessa perspetiva, entende a situação de Lisboa e Porto em que as dioceses ainda não avançaram com nenhuma medida cautelar?
Compreendo que se exijam mais elementos, quando o único elemento que existe é o nome de uma pessoa numa lista fornecida pela Comissão Independente. Também já ouvi dizer a membros da Comissão que não é esse o único elemento de que dispõem as dioceses. De facto, há situações em que também há nos arquivos das dioceses elementos relativos àquela pessoa. Mas isso não sucede em todos os casos. Quando se verifica essa situação em que há um sacerdote que tem um processo nos arquivos diocesanos, ter-se-á de fazer a devida análise. E verificar se o processo já findou e se findou com a aplicação de uma medida ou com a absolvição
Se o processo está pendente, também há que esclarecer se estes factos que foram agora revelados à Comissão independente são os mesmos que foram objeto destes processos. E se a decisão já está tomada, não pode ser alterada, tal como sucede no processo penal. Se há factos novos, realmente justifica-se abrir outro processo. Sãoe stas questões que importa esclarecer e em muitas situações a necessidade de recolher mais elementos tem a ver também com isto.
O afastamento temporário não é um fim em si mesmo? Quando há bispos ou há responsáveis que pedem mais elementos, isso é questionado como uma vontade de ocultar, mas a verdade é que, após o afastamento temporário, é preciso fazer um processo que leve a uma decisão...
Exato. Isso também é importante ter em consideração. Estes elementos servem também para a investigação que vai ser feita. A investigação que é feita no âmbito da Igreja também nalguns casos, naqueles que ainda não houve prescrição no âmbito civil, também no Ministério Público, sucederá o mesmo. Se o único elemento que existe é uma denúncia anónima, isto não é suficiente para uma condenação - nem no âmbito canónico nem no âmbito civil. Aí são muito claras as regras do processo penal. Uma denúncia anónima pode originar uma investigação e, muitas vezes, isso acontece justificadamente porque a denúncia, apesar de ser anónima, contém uma série de circunstâncias que levam a que a que se justifique a investigação e dá pistas para fazer essa investigação.
No processo canónico, isso também é admitido agora....
No processo canónico também pode haver uma investigação iniciada com uma denúncia anónima, mas a denúncia em si mesma não serve de prova. Será necessário que estas vítimas se identifiquem e prestem depoimento.
Tem-se dito que há esta regra "in dubio pro reo". Ou seja, na dúvida, deve-se favorecer a pessoa acusada e temos de a substituir por outra que é "in dubio pro vítima". E então as pessoas pensam: "Numa situação destas, temos a declaração da vítima, temos a declaração do réu, chamamos-lhe assim, da pessoa acusada; e, então, em face deste princípio, não pode haver condenação. Não é assim que as coisas funcionam. Nestas situações, de facto, há muitos casos em que só temos o depoimento da vítima. Não há outra prova porque já passou muito tempo. Não há exames médicos, não há testemunhas oculares. Tudo está no juízo que se faça da credibilidade da testemunha e, às vezes, a maneira como a pessoa se exprime revela bem que há uma autenticidade. A emoção que coloca naquilo que diz, a forma como ele diz, não, não é teatro. Eu já fui confrontado com situações destas, não é? Em que, realmente, não seria possível simular aquela reação.
E, depois, também há uma série de sintomas que os psicólogos podem atestar. Sintomas que revelam que são típicos deste tipo de crimes e, portanto, não vamos pensar que por operar o princípio "in dubio pro reo", a vítima vai ser prejudicada porque só há o seu depoimento, não vai haver condenação. Não é assim. E não é assim em muitos casos destes que se verificam no âmbito civil e penso que também será assim no âmbito canónico.
Ainda uma pergunta neste âmbito, que tem a ver com a mensagem que o Papa enviou aos participantes do Congresso latino-americano sobre a prevenção dos abusos. O Papa Francisco deixou um alerta para a má gestão deste tipo de casos e temos visto e ouvido posições muito críticas face à forma como a Igreja tem gerido o problema. Do seu ponto de vista, há necessidade de se encetar um novo caminho, até para se evitar essa ideia que tem permanecido de que possa eventualmente continuar a existir alegado encobrimento de situações?
Eu acho que temos que distinguir situações que ocorreram no passado daquilo que se verifica atualmente. É isso nós podemos comprová-lo por casos que têm sido noticiados com toda a transparência. Penso que, às vezes, até se tem ido longe demais: precisamente nestas situações em que houve uma aplicação de uma medida cautelar e depois houve uma absolvição. Já houve situações destas.
Hoje em dia, há uma exigência de abertura e de transparência que não existia no passado, independentemente da questão da aplicação das penas ou não. Mas, para responder à sua pergunta, sim, é necessário que haja gestos concretos no sentido de demonstrar que hoje não há essa perspetiva corporativa de defesa da imagem da Igreja, quando o mais importante é defender as vítimas.
É preciso evitar essa imagem corporativa, mas também quero dizer que não podemos concluir isso só pelo facto de uma determinada diocese não ter suspendido imediatamente um sacerdote, quando isso pode vir a verificar-se alguns dias depois, quando forem obtidos estes elementos.
Noutro plano, ficámos a saber que a legislação sobre eutanásia regressa à Assembleia da República no dia 31 de março, depois de mais um "chumbo" do Tribunal Constitucional. Nota aqui um "encarniçamento" parlamentar, dada a quantidade de observações que têm sido feitas sobre a lei? Por outro lado, sabemos que esta lei será aprovada e, por isso, o que se poderá esperar do Presidente da República quando a nova redação lhe chegar às mãos?
Na questão da análise da constitucionalidade da lei, temos de reconhecer que nesta decisão do Tribunal Constitucional, como na anterior, prevaleceu uma maioria de votos no sentido de não afastar a constitucionalidade da eutanásia em si mesma.
Podemos contestar isso e há votos de vencido nesse sentido, porque há uma afirmação muito clara, muito categórica - acho que mais categórica não poderia ser - da Constituição no sentido do princípio da inviolabilidade da vida humana. E não vejo como é que se pode dizer que não está afetado este princípio. Isso parece-me claro.
Têm sido outras questões de menor relevância que têm levado à declaração de inconstitucionalidade, designadamente a questão do uso de conceitos indeterminados, conceitos que não são muito claros, que também é um problema. Também acho que não será possível nesta matéria, porque é uma matéria muito importante que tem de ver com a vida, ter conceitos muito claros, muito seguros, e é na base da indeterminação desses conceitos que se vai alargando o campo de aplicação da eutanásia, a chamada rampa deslizante.
Também é importante sublinhar que o que está em causa é uma questão que, em meu entender, é secundária, mas também ela é relevante para o Tribunal Constitucional.
Em relação ao Presidente da República, há, de facto, para além da questão da constitucionalidade e da posição do Tribunal Constitucional, o veto político, que, por si só, não impedirá a aprovação da lei numa segunda votação. Mas um veto político é um testemunho. Acho que é uma tomada de posição que eu espero que o Presidente da República assuma porque sabemos o que ele pensa sobre o assunto. E o Presidente da República está continuamente a fazer comentários sobre matérias que não são rigorosamente do âmbito das suas competências...
Está a falar da questão dos abusos?
Por exemplo. Por exemplo, ele tem legitimidade para o fazer noutra qualidade, mas propriamente na qualidade de Presidente da República não parece que seja da sua competência. Mas não só, há outras matérias que são da competência do Governo. Esta é uma matéria de competência do Presidente da República. O direito de veto é algo que para ele e tem toda a legitimidade para o fazer. Tem a mesma legitimidade, e de acordo com as suas convicções, os seus princípios, tem a mesma legitimidade que têm os deputados para votar a aprovação da lei.