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A guerra não é um fenómeno novo, mas o conflito na Ucrânia é, muito provavelmente, o mais em documentado da História. Pelo menos, até acontecer a próxima guerra.
O primeiro grande conflito mundial da era do Tiktok é vivido em todas as frentes. Emocionamo-nos com as imagens que nos chegam pelas televisões, com os sons das sirenes que ouvimos na rádio e com os registos fotográficos dos repórteres que estão no terreno, mas também com os "briefings" diários do Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenskiy, via Telegram, ou com as mensagens trocadas entre ministros ucranianos e a elite de Silicon Valley, no Twitter.
Guerra sem filtros
Uma dessas ferramentas, o Telegram, assumiu, nas últimas semanas, um papel fundamental na partilha de informação (e propaganda). Pululam os canais onde se podem encontrar imagens, algumas bem gráficas, de bombardeamentos, vítimas e material bélico.
Volodymyr Zelenskiy é um dos seus principais utilizadores, angariando mais de 1,4 milhões de subscritores na plataforma. Não é o único no seu executivo: vários elementos do Governo local também fazem uso da ferramenta e, nela, celebram vitórias e pressionam os países a ajudarem.
Como funciona e para que serve?
O Telegram, com mais de 550 milhões de utilizadores um pouco por todo o planeta, é uma espécie de WhatsApp que permite ter até 200 mil pessoas num "chat" de grupo e canais de difusão com milhares de subscritores (o limite do Whatsapp é bem menor). Foi criado em 2013 e depressa ganhou o apelido de "app dos terroristas".
Com todas as suas mensagens encriptadas e guardadas na "cloud" (entre outras opções de secretismo muito apetecíveis para quem quer manter a discrição) e sem grandes filtros ou censuras, a aplicação foi utilizada no passado por extremistas para organizar, por exemplo, o assalto ao Capitólio, ou a oposição a Lukashenko na Bielorrussia, em 2020.
Também movimentos como o Black Lives Matter não o dispensou para organizar as suas primeiras manifestações, usando a mesma plataforma que é usada por supremacistas brancos, do outro lado da "barricada".
O Telegram está a vestir, neste conflito, uma nova roupagem. É uma das aplicações mais populares na Rússia e na Ucrânia e, por isso, foi naturalmente adoptado como canal de comunicação nesta guerra, que também é cibernética. Segundo a revista Time, houve um aumento de 48% do número de subscritores russos do Telegram desde 24 de fevereiro, data da invasão à Ucrânia - um aumento que representa oito milhões de novos utilizadores.
Arma inimiga ou aliada?
É utilizado pelos ucranianos para espalhar informação e coordenar ataques e ciberataques. O próprio Presidente ucraniano utiliza regularmente a ferramenta para partilhar "briefings" diários com a nação e com o mundo. No entanto, também o lado russo faz uso dela com a mesma finalidade e se, do lado ucraniano, muito informação é passada, do lado russo o mesmo acontece.
Ambos usam o Telegram como poderosa arma de propaganda, mas também para espalhar desinformação no país vizinho e além-fronteiras, pelo que todo o cuidado é pouco. Especialmente tendo em conta que o Telegram se orgulha de contrariar a tendência de outras redes para moderar cada vez mais o conteúdo que por lá passa.
O Telegram foi, inicialmente, banido da Rússia em 2018, mas voltou a estar disponível em 2020, sendo utilizado pelo Kremlin para passar informação durante a pandemia.
Agora, jornalistas russos também utilizam a aplicação, das poucas ainda permitidas no país, para fornecer informação independente numa altura em que poucos têm coragem de o fazer.
Como é que a plataforma assumiu esta importância?
Como já referido, o Telegram não é um espaço estranho para Zelenskiy e companhia. O atual Presidente da Ucrânia utilizou o serviço de mensagens instantâneas na campanha eleitoral que lhe garantiu o lugar, em 2019.
A braços com uma guerra, também ela cibernética, bastou ao executivo continuar a utilizar a arma que já conhecia. Se, no passado, os canais criados foram usados para angariar votos, agora servem para recrutar militares e reunir apoios.
"Podemos dizer que é o nosso habitat", garantia, há dias, Mykhailo Fedorov, vice-primeiro-ministro e ministro da Transformação digital da Ucrânia em entrevista à revista Time.
O canal do governo, utilizado nos últimos dois anos para transmitir informação relacionada com a Covid-19, rapidamente passou a ser usado para informar sobre a guerra. "Ukraine Now" é, agora, um canal com várias ramificações, em diversas línguas (incluindo português).
Também os governos locais e as câmaras municipais de cidades como Mariupol utilizam a aplicação para alertar a população para ataques aéreos e organizar corredores humanitários. Na guerra online toda a ajuda é necessária e o governo ucraniano pede contributos também através do Telegram.
"O Centro de Combate à Desinformação do Conselho Nacional de Segurança e Defesa da Ucrânia convida os cidadãos a se juntarem à frente da informação", era dito no seu canal, logo nos primeiros dias de conflito, para incentivar os ucranianos com familiares na Rússia a lhes enviarem o link do canal ucraniano no Telegram.
O governo da Ucrânia criou, igualmente, um chatbot para permitir que a população informe as autoridades onde estão as tropas russas.
Será seguro? Fundador diz que sim
O Telegram tem sido utilizado pelos ucranianos, mas as ramificações da aplicação podem causar confusão. Um dos fundadores e atual CEO da plataforma, Pavel Durov, é russo, o que lhe valeu acusações de trabalhar para Putin. Criou a empresa com o irmão em 2013 e, antes disso, já tinha estado na génese de outra rede social famosa no Leste, o VKontakte (uma espécie de Facebook russo).
Numa mensagem partilhada no seu canal na plataforma, no início do conflito, Durov defende o contrário. "Quem lê as minhas publicações sabe que a minha família materna tem origem em Kiev. O nome de solteira da minha mãe é ucraniano (Ivanenko) e temos muitos familiares ainda a viver na Ucrânia", começa por dizer.
Por isso mesmo, assegura, este conflito é "pessoal", tanto para ele como para a rede social.
"Algumas pessoas questionam se o Telegram é menos seguro para os ucranianos porque eu cheguei a viver na Rússia. Vou explicar-vos como a minha carreira na Rússia terminou: era CEO da VK há nove anos, a maior rede social na Rússia e na Ucrânia.
Em 2013, a agência de segurança russa, a FSB, queria obrigar-me a fornecer os dados privados dos utilizadores ucranianos da VK que estavam a protestar contra o presidente pró-russo. Recusei-me pois isso seria uma traição aos nossos utilizadores ucranianos. Depois disso,fui despedido da empresa que fundei e fui forçado a abandonar a Rússia", conta.
"Perdi a minha empresa e a minha casa, mas voltava a fazê-lo sem hesitar", assegura.
"Quando desafiei aquelas exigências foi uma aposta arriscada para mim. Ainda vivia na Rússia, a minha equipa e a minha empresa também estavam baseados naquele país. Muitos anos já passaram desde então e muitas coisas mudaram: não moro mais na Rússia e não tenho mais companhias e equipas lá. Mas uma coisa se mantém: defendo os nossos utilizadores seja do que for. O seu direito à privacidade é sagrado. Agora mais do que nunca", rematou.