Nos Estados Unidos da América é recorrente a discussão sobre a divulgação do estado de saúde dos Presidentes, sobretudo neste último ano em que começam a surgir candidatos à corrida à Casa Branca e é questionada a forma física de Joe Biden, candidato à recondução aos 80 anos nas presidenciais de 2024.
Na quarta-feira, Marcelo Rebelo de Sousa teve uma indisposição durante um evento na Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) da Universidade Nova, no Monte de Caparica, que levou a que fosse transportado de ambulância para o Hospital de Santa Cruz, em Lisboa, na sequência de uma "reação vagal" ou quebra de tensão.
Sendo a mais alta figura do Estado, o Presidente da República devia ser obrigado a divulgar um boletim médico periódico, tornando transparente o seu próprio estado de saúde? É ou não a saúde do chefe de Estado um assunto do foro privado?
O constitucionalista Vitalino Canas admite que a questão é "delicada", mas abre a porta a que a divulgação do estado de saúde de alguns titulares de cargos públicos e políticos seja legislada e à abertura de uma "exceção" à regra geral.
"As questões relacionadas com a situação médica são do foro íntimo de cada um, mesmo em relação às chamadas figuras públicas, designadamente figuras com o relevo do Presidente da República, do primeiro-ministro e ministros. Mesmo em relação a elas, o regime que vigora em Portugal, e que é tradicional vigorar, é o regime de que só poderá haver notícia sobre o assunto se os próprios ou quem os represente o autorizarem", explica à Renascença.
O jurista lança a questão: "No caso do Presidente da República, que é um caso especial que causa problemas constitucionais especialmente delicados, se me perguntar se, havendo uma questão, não deveria haver uma exceção? Admito que sim."
Vitalino Canas salienta que, se ocorrer "alguma coisa grave" ao Presidente, isso "requer uma substituição e um processo constitucional relativamente complexo" e, nesse caso, o jurista admite que "eventualmente poderá justificar-se" alterar a lei para dar conforto à obrigação de tornar público o boletim médico da mais alta figura do Estado.
À saída do Hospital de Santa Cruz onde foi assistido ontem, o próprio Presidente Marcelo deu uma explicação de 12 minutos sobre o que lhe aconteceu, quais as recomendações dos médicos e o uso do holter para avaliar a situação cardíaca. Vitalino Canas nota que "ele próprio sentiu que esta é uma questão de preocupação de interesse público e ele próprio fez essa explicação".
Para que estas explicações sobre o estado de saúde das mais altas figuras do Estado se tornem a regra, Vitalino Canas admite "que sim, que no caso muito especial de um ou outro titular de cargo político se pudesse justificar uma quebra ou uma exceção à regra geral de que as questões de saúde são do foro privado, e só podem ser objeto de tratamento público se houver uma autorização específica do próprio".
Contudo, isso "teria de ficar legislado, teria de haver uma norma que o explicitasse", explica.
"Não existe qualquer norma nesse sentido, nem na Constituição, nem no direito ordinário. Teria de haver alguma explicação de como isso se passaria, como seriam as comunicações, os pormenores que poderiam ser dados, e isso requer um balanceamento, determinada ponderação e equilíbrio. Teria de haver legislação, sem ela não será possível exigi-lo", admite o jurista.
No caso de um Presidente da República se ausentar por motivo de doença por tempo prolongado ou definitivamente, o que está determinado na Constituição é que o chefe de Estado seja substituido pelo presidente da Assembleia da República, não existindo assim vazio constitucional.
Se, por hipótese, Marcelo ficar impedido temporária ou definitivamente de desempenhar as funções de Presidente da República, atualmente seria substituído por Augusto Santos Silva, que ficaria com todos os poderes constitucionais de chefe de Estado, designadamente o poder de convocar eleições.