Jorge Moreira da Silva deu a entrevista ao programa Hora da Verdade da Renascença e do jornal Público minutos depois de chegar de Gaza onde, neste momento, cada criança tem apenas um litro de água por dia para viver e existe "apenas um chuveiro para cada 1850 pessoas".
O diretor-executivo do Escritório das Nações Unidas para Serviços de Projetos conta ainda como no terreno Israel está a dificultar a entrada de ajuda humanitária e dos 500 camiões que antes entravam em Gaza, agora só entram no máximo 200.
Moreira da Silva evita falar da crise política em Portugal por ser alto funcionário das Nações Unidas, embora admita em breve "dizer qualquer coisa" quando questionado se gostava de ver Luís Montenegro como primeiro-ministro. Garante que não guarda "qualquer ressentimento".
Esteve em Gaza na última semana. Que situação encontrou no terreno, relativamente aos refugiados e relativamente aos próprios funcionários da ONU?
Foi uma missão que já tinha sido tentada há um mês. Na altura, por razões de segurança, não nos foi permitido entrar. Impressionou-me ver o número de crianças feridas que estavam em trânsito para fora de Gaza. Crianças amputadas, crianças desfiguradas e com um olhar resignado, crianças de seis anos com um olhar como se tivessem 80 e muitos anos. Mais de 50% das casas estão destruídas e 85% da população não vai ter para onde ir no momento em que a guerra terminar. Não há uma única escola em funcionamento. Por dia, em média, as crianças têm acesso a um litro de água, quando o que seria necessário são 15 litros, para beber, para a alimentação e para higiene. Dos 40 hospitais de Gaza, só 16 estão a funcionar parcialmente e 25% da população, 500 mil pessoas estão em situação de fome. Morreram mais crianças nos últimos 100 dias do que em todos os conflitos a nível mundial nos últimos cinco anos. Portanto, estamos perante uma catástrofe humanitária sem precedentes. Não quero poupar nas palavras. É uma catástrofe humanitária sem precedentes porque, ao contrário de outras catástrofes humanitárias, as pessoas não têm para onde fugir. As pessoas fogem da guerra para salvar a vida. No caso de Gaza, não há refugiados porque não podem sair.
No fundo, essa população está presa por Israel naqueles quilómetros quadrados.
Está presa num triplo sentido. Está cercada por um contexto de guerra e, portanto, está a ser bombardeada, incluindo as Nações Unidas. Nunca aconteceu um conflito em que ser funcionário das Nações Unidas não representa nada em termos de segurança. Tivemos 150 colegas nossos que morreram, mais de 140 infraestruturas das Nações Unidas foram diretamente bombardeadas. A população está cercada por causa dos bombardeamentos e está cercada por falta de acesso a ajuda humanitária porque a ajuda não consegue entrar.
Por outro lado, já se notam surtos de doenças do foro diarreico porque não há água potável, não há medicamentos, muitas doenças do foro respiratório. A cólera é um risco real. Há aqui uma concentração de crises. Há uma casa de banho para cada 400 pessoas e um chuveiro para cada 1850 pessoas. As pessoas estão todas nos nossos abrigos das Nações Unidas. 85% da população está concentrada nos abrigos. Dá para perceber a situação ultrajante em que as pessoas estão. Temos 50 mil grávidas sem qualquer tipo de cuidado que vão dar à luz. Eu já nem sei que adjetivos usar porque nos últimos 100 dias utilizei todo o dicionário de adjetivos.
Há bens da ajuda humanitária que estão a ser desviados?
Quando a ajuda chega a Gaza, a situação é tão desesperante, que as pessoas saltam para cima dos camiões e tentam retirar os alimentos. E é muito difícil que os camiões cheguem ao destino porque está tudo bloqueado. Eu vi mais de 500 camiões TIR parados na estrada.
As estradas estão bloqueadas?
Porque não há autorização para entrar. É um processo quase kafkiano. Toda a ajuda humanitária que os contribuintes, os países doadores, dão generosamente a Gaza é armazenada no Egito a 50 quilómetros de Gaza. Os camiões têm que fazer estes 50 quilómetros, quando chegam a Rafah têm que ser desviados para Nitzana, em Israel, para fazer uma nova verificação das mercadorias, depois regressam a Rafah para atravessar. Estamos a falar de 150 quilómetros, quando bastaria fazer 50 quilómetros.
Os camiões são inspecionados três vezes. Quando entram em Gaza, a mercadoria tem que ser descarregada para camiões pequenos que possam fazer a distribuição nas padarias, nos centros de saúde, nos hospitais. Ora, 75% de todos os pedidos de distribuição são rejeitados em virtude dos bombardeamentos. Israel não permite a distribuição e, portanto, temos 75% de toda a ajuda que entra em Gaza não consegue ser distribuída. Estamos a falar de um estrangulamento de grandes dimensões. Só 14% de toda a ajuda que estava destinada à zona norte de Gaza conseguiu ser entregue.
Israel está a condenar à fome os civis de Gaza?
O secretário-geral das Nações Unidas tem sido muito enfático: até as guerras têm regras e as regras das guerras pressupõem que civis não são bombardeados, que infraestruturas civis não são bombardeadas, que a ajuda humanitária consegue chegar àqueles que mais precisam. Estas condições não estão a ser verificadas. Dentro de Gaza, também não há comunicações, há um black out. Como é que é possível distribuir sem comunicações? Antigamente, tínhamos nove fronteiras em Gaza, agora estão duas a funcionar. Depois, vi um coisa surpreendente: vi produtos a serem rejeitados. Há uma lista de produtos rejeitados por Israel porque considera que podem ser de uso duplo e, portanto, que podem ser utilizados para outros fins, como a construção de armas ou coisas que possam ameaçar. Eu vi painéis solares, frigoríficos solares, lanternas solares, brinquedos, bonecas, livros para colorir, botijas de oxigénio que são um suporte de vida básico, tudo rejeitado. Quando se rejeita uma caixa porque tem um item supostamente proibido, todo o camião é rejeitado. Portanto, repare como as dificuldades que são ser colocadas a ajuda humanitária tornam esta guerra ainda mais indigna e ainda mais imoral, ainda mais ultrajante quanto aos direitos básicos.
Diria que estamos perante um genocídio ou não?
Não compete às Nações Unidas classificar do ponto de vista jurídico esse tipo de intervenções. São os tribunais que tratam dessa classificação e, portanto, nunca vai ouvir de nenhum funcionário das Nações Unidas uma afirmação que aponte para uma classificação desse género. O que corre no âmbito das Nações Unidas é a ajuda humanitária. É importante criar todas as condições para haver um cessar-fogo humanitário, que todo o direito internacional humanitário seja respeitado, que a ajuda consiga chegar de uma forma rápida e segura a quem mais precisa e uma libertação incondicional dos reféns israelitas que estão em Gaza.
Os ataques perpetrados pelo Hamas foram brutais, horrendos e hediondos. Mas isso não justifica uma punição coletiva da população inocente civil em Gaza. Espero sinceramente que não só a guerra acabe com possam surgir os mecanismos diplomáticos essenciais para que Israel tenha direito à segurança que merece, mas a Palestina merece ter um Estado.
Ao fim de mais de 100 dias de guerra, como é que vê os esforços do governo de Israel para criar condições para que se ajude a população de Gaza? A situação está a piorar?
Está a piorar, está a degradar-se. Estamos numa situação pior do que estávamos há uma semana, duas semanas e convém as pessoas não terem a ilusão de que a situação melhorou só por haver menos notícias. É importante que não percamos o sentido de humanidade porque esta guerra está a revelar uma enorme falta de sentido de humanidade. O único momento em que houve um alívio foi um momento em que houve aquela pausa humanitária. Foi a única altura em que conseguimos fazer entrar 300 camiões. Foi um dia em Novembro. Desde aí ficam sempre abaixo dos 200. Antes da guerra, entravam em Gaza 500 camiões por dia. Os países que são membros das Nações Unidas têm que continuar a fazer as diligências diplomáticas e o conselho de segurança tomou algumas decisões importantes, nomeadamente a de ter criado um coordenador para Gaza para acelerar a ajuda humanitária.
Houve um corte de relações entre Israel e as Nações Unidas?
Não, houve umas declarações feitas por um embaixador de Israel nas Nações Unidas, mas não houve de maneira nenhuma uma alteração do relacionamento institucional. Eu estive em Israel esta semana, tivemos reuniões com o governo. A crítica que foi feita ao Secretário-Geral foi injusta. Não podemos é, obviamente, deixar de criticar com maior veemência a circunstância da população civil de Gaza estar a ser o bode expiatório do crime brutal perpetrado pelo Hamas.
E, perante isso, como é que viu o último plano de Israel, o chamado “plano dos quatro cantos”, para o final do ataque a Gaza, em que Israel quer ficar responsável pela segurança do território?
Não vou estar na posição de analista. A posição das Nações Unidas é uma só, que é a ideia de que Israel tem direito à sua segurança e a Palestina tem direito a um Estado. A solução dos dois Estados continua a ser a solução mais válida. Espero que qualquer solução diplomática e política não faça tábua rasa do único progresso que foi alcançado na diplomacia durante décadas.
Os Estados Unidos da América podiam ser mais ativos nesta engenharia diplomática?
Têm estado muito ativos. Não tem precedente o número de deslocações de um secretário de Estado à região. O meu grande problema está relacionado com o tempo, porque a cada dia que passa são milhares de vidas que se perdem. Os meus funcionários na maior parte dos dias estão impedidos de ajudar porque não é possível levar a ajuda a quem mais precisa. É a primeira vez que existe um conflito em que a componente humanitária não funciona.
Mas Israel não reconhece isso.
Não, não reconhece, mas julgo que está atento à reação que a comunidade internacional vai tendo. Nas decisões do Conselho de Segurança para a criação de um mecanismo para acelerar a ajuda humanitária, Israel não se opôs e tem tido uma posição construtiva. As condições que estão a ser proporcionadas, na prática, impedem a ajuda humanitária.
Vai haver eleições nos Estados Unidos em Novembro. Se Donald Trump voltar a ser Presidente dos Estados Unidos, como é que vê os conflitos que existem, nomeadamente no Médio Oriente?
Sei que há muita gente que já está a fazer essa antecipação para uma eleição que há em Novembro mas Novembro é tarde demais para a situação de emergência em que estamos. Que ninguém use como desculpa a circunstância de ser necessário esperar por uma clarificação nos Estados Unidos.
Com Donald Trump espera que os Estados Unidos se empenhem da mesma forma, como estava a referir?
Não vou estar a fazer comentários sobre escolhas que livremente os cidadãos americanos farão. O que está em causa é o respeito pelos direitos humanos e, portanto, não pode haver nenhum partido, nenhum político, nenhum protagonista que possa ter uma visão diversa do que é o respeito integral pelos direitos humanos. Hoje aquilo que está em causa é a incapacidade de respeitar não só os direitos humanos como o direito internacional humanitário.
Se a situação continuar desta maneira, em Novembro Gaza se calhar já desapareceu?
Gaza não desaparecerá enquanto território. A população de Gaza está em risco de uma diminuição brutal porque em 100 dias já morreram 24.000 pessoas.
É possível, com a atual arquitetura, a ONU chegar mais longe ou fazer melhor? Pergunto se é preciso ou não rever o sistema de vetos nas Nações Unidas?
Concordo totalmente que é necessário uma reforma do Conselho de Segurança. Ouvi com muito interesse o discurso do Presidente Biden na última Assembleia Geral a defender a reforma do Conselho de Segurança.
A própria arquitetura do desenvolvimento e das parcerias internacionais tem que ser revisitada. Nós vivemos num sistema multilateral do pós-guerra. Hoje a ajuda ao desenvolvimento já não só não vem só dos governos, vem das fundações, do sector privado. Os doadores já não são os do Norte e os recipientes os do Sul. Os países em desenvolvimento não têm uma representação adequada nos bancos multilaterais.
Também o alargamento do número de membros permanentes do Conselho de Segurança?
No plano pessoal, é evidente que essa é uma das questões importantes. Noto que há uma abertura muito maior para esses temas hoje do que havia há dez anos.
Será uma possibilidade ainda a tempo deste mandato do secretário-geral das Nações Unidas?
Não sei. Noto o secretário-geral das Nações Unidas com um ímpeto de transformação do sistema de financiamento internacional.
Guterres termina o mandato no final de 2026. Por este caminho, acha que pode deixar as Nações Unidas num pântano, ou seja, uma organização sem qualquer respeito pelas nações que a integram é mais fraca do que era quando Guterres tomou posse?
Não me recordo de um secretário-geral das Nações Unidas que tenha tido um apoio tão forte dos seus funcionários.
Mas aqui não estou a falar do corpo de funcionários, mas dos Estados.
É muito fácil poupar nas palavras. Quando se está em posições em que o soberano são os países, o secretariado pode escudar-se nessa ideia e não ser muito vocal. António Guterres tem sido muito vocal, bastante assertivo e insistente em temas como o combate às crises, os refugiados, a prevenção de conflitos, as alterações climáticas e agora a guerra, nomeadamente a guerra em Gaza. Julgo que António Guterres trouxe porventura uma dimensão mais política ao cargo de secretário-geral das Nações Unidas.
Para terminar, a última crise que é a crise política em Portugal. Era inevitável, a seu ver, eleições antecipadas?
Não vou entrar por aí. Continuo a acompanhar a situação política em Portugal, mas deixei de ter condições de participar em termos políticos e muito menos partidários. A minha última aventura política ocorreu há um ano e meio. Nessa altura, prescindi das funções que tinha na OCDE para concorrer à liderança do PSD. Perdi. Voltei a entrar no circuito internacional por concurso. Não estou em condições de poder estar a pronunciar-me sobre a vida política nacional. Acompanho, tenho muito interesse mas não posso opinar.
Tem um interesse preocupado?
Sempre. Sou português. Tenho sempre um enorme interesse e preocupação com o futuro do país. Portugal tem um potencial enorme de desenvolvimento, de crescimento, de promoção da igualdade de oportunidades e, portanto, espero sempre que o meu país possa desenvolver-se com o nível que merece.
Gostava que o seu adversário, na altura, concorreu contra Luís Montenegro, fosse primeiro-ministro?
Até posso vir a dizer qualquer coisa nas próximas semanas, no plano pessoal. Continuo militante do PSD, mas as Nações Unidas impedem-me de exercer política partidária. Numa entrevista em que estive a falar de Gaza, não vou seguramente falar.
Gostava um dia de voltar à política partidária?
Nunca fiz grandes cálculos. Tudo o que eu faço está associado aos temas do movimento sustentável, da paz, do desenvolvimento à prosperidade, à protecção ambiental. Neste momento, sinto-me muito realizado pela função que desempenho. Não tenho qualquer intenção de me desviar deste sentido de propósito. O PSD fez a sua escolha. Eu fiz a minha. Estamos bem. Há um ano e meio, apresentei-me a eleições de uma forma clara com um determinado projeto. As pessoas fizeram a sua escolha. Eu depois fiz a minha escolha.
Acha que o tempo lhe deu razão?
Eu sou mesmo a única pessoa que não vai responder a essa pergunta. É uma pergunta que me têm feito muitas vezes, mas eu não vou responder. Compete a outros responder. Não guardo qualquer ressentimento, só para que não fique nenhuma dúvida. Sinto-me muito realizado com aquilo que faço e com as decisões que tomei.