O Papa deixou esta segunda-feirafortes apelos ao cessar-fogo e à paz e condenou todas as formas de terrorismo, extremismo e de colonização ideológica.
No seu habitual discurso de Ano Novo aos membros do Corpo diplomático acreditado na Santa Sé, Francisco traçou um longo elenco de preocupações pelo aumento de conflitos que se verificam no mundo, pediu respeito pelo direito internacional, incentivou os jovens a votar e edificar o bem comum nos seus países e considerou a JMJ Lisboa, “um grande hino à paz”
Um triste mosaico de conflitos
“O Mundo é atravessado por um número crescente de conflitos que estão lentamente a transformar aquela que tenho repetidamente definido como terceira guerra mundial aos pedaços num verdadeiro conflito global”, lamentou.
As preocupações do Papa começam no ataque terrorista de 7 de outubro passado contra a população em Israel e a forte resposta militar israelita em Gaza, que “causou uma situação humanitária gravíssima com sofrimentos inimagináveis” e prosseguem com um apelo ao cessar-fogo em todas as frentes, incluindo o Líbano, e a libertação imediata de todos os reféns, bom como o acesso a ajudas humanitárias e à proteção aos hospitais, escolas e locais de culto.
O Papa exprimiu “amargura pelos milhões de refugiados sírios que ainda se encontram nos países vizinhos, como a Jordânia e o Líbano”. Chamou a atenção da comunidade internacional para o Myanmar e para a emergência humanitária que afeta os Rohingya. E, sobretudo, lamentou que “depois de quase dois anos de guerra em grande escala da Federação Russa contra a Ucrânia, a tão desejada paz ainda não conseguiu encontrar lugar nas mentes e nos corações, não obstante as numerosíssimas vítimas e o rasto enorme de destruição”.
Na lista das preocupações de Francisco, surgem também as tensões no Sul do Cáucaso entre a Arménia e o Azerbaijão, as múltiplas crises humanitárias e focos de guerra e terrorismo em África, nomeadamente nos Camarões, em Moçambique, na República Democrática do Congo e no Sudão do Sul. As tensões na Venezuela, na Guiana, no Perú e, sobretudo, na Nicarágua não foram esquecidas nesta longa lista de graves tensões.
Vítimas civis têm nome e apelido, não são meros "danos colaterais"
“As guerras de hoje já não se desenrolam apenas em campos de batalha delimitados, nem dizem respeito somente aos soldados”, alerta o Papa, uma vez que “não há conflito que não acabe de alguma forma por atingir indiscriminadamente a população civil”.
Francisco dá como exemplo o que se passa na Ucrânia e em Gaza. “Não devemos esquecer que as violações graves do direito internacional humanitário são crimes de guerra, e que não basta assinalá-las, mas é preciso antecipar-se-lhes. Por isso, há necessidade dum maior empenho da comunidade internacional pela salvaguarda e implementação do direito humanitário, como o único caminho para a tutela da dignidade humana em situações de conflito bélico”, disse.
Aos diplomatas dos 184 países presentes nesta audiência, o Santo Padre salientou que “as vítimas civis não são "anos colaterais", mas sim "homens e mulheres com nomes e apelidos que perdem a vida. São crianças que ficam órfãs e privadas do futuro. São pessoas que padecem a fome, a sede e o frio ou que ficam mutiladas por causa da potência das armas modernas”
Com veemência, o Papa acrescentou: “Se conseguíssemos fixar cada um deles nos olhos, chamá-los por nome e evocar a sua história pessoal, veríamos a guerra como ela é: nada mais que uma enorme tragédia e ‘um massacre inútil’, que fere a dignidade de toda a pessoa nesta terra."
Francisco reafirmou a importância de se desviar os recursos destinados ao armamento para os aplicar a favor de uma segurança global e constituir um Fundo mundial para eliminar a fome e promover um desenvolvimento sustentável de todo o planeta. Além de condenar os arsenais nucleares, considerou imoral a sua produção e posse, esperando “que se possa chegar o mais rapidamente possível à retoma das negociações para o início do Plano de Ação Conjunto Global, mais conhecido como «Acordo sobre o Nuclear Iraniano», para garantir a todos um futuro mais seguro”.
As grandes tragédias no Mediterrâneo e não só
O Papa preocupa-se com a crise climática e ambiental, a pobreza, o abuso da Casa comum e a exploração contínua dos seus recursos afetam milhares de pessoas que abandonam as suas terras à procura dum futuro de paz e segurança.
Francisco recordou os que arriscam a própria vida em percursos perigosos, como no deserto do Saara, na floresta de Darién, na fronteira entre Colômbia e Panamá, na América Central, no norte do México na fronteira com os Estados Unidos, e sobretudo no Mar Mediterrâneo. ”Infelizmente, este tornou-se, na última década, um grande cemitério com tragédias que continuam a suceder-se, também devido a traficantes de seres humanos sem escrúpulos”, disse, ao recordar que a vocação do ‘Mare Nostrum’, “não é a de ser um túmulo, mas um lugar de encontro e enriquecimento recíproco entre pessoas, povos e culturas”, afirmou.
Contra a colonização ideológica, incluindo a teoria do género
Uma crescente falta de sensibilidade sobre o respeito pela vida, motivou o Papa a recordar que se trata de “toda a vida humana, a começar pela do nascituro no ventre da mãe, que não pode ser suprimida nem se pode tornar objeto de tráficos ilícitos”.
Francisco considerou “deprimente a prática da chamada barriga de aluguer, que lesa gravemente a dignidade da mulher e do filho”.
Perante os diplomatas dos cinco continentes, o Santo Padre condenou as tentativas, nas últimas décadas, em "introduzir novos direitos, não plenamente sólidos como os definidos originalmente e nem sempre aceitáveis, que ocasionaram colonizações ideológicas, entre os quais tem um papel central a teoria do gender, extremamente perigosa porque cancela as diferenças com a pretensão de tornar todos iguais".
Francisco sublinhou que “tais colonizações ideológicas provocam feridas e divisões entre os Estados, em vez de favorecer a edificação da paz”.
Votar responsavelmente nas eleições de 2024
A nível mundial, o ano de 2024 verá a convocação de eleições em muitos Estados, por isso, o Papa recorda que “as eleições são um momento fundamental na vida dum país, pois permitem a todos os cidadãos escolher responsavelmente os seus governantes”.
Preocupado com certos desvios da Democracia, o Santo Padre considerou importante que os cidadãos votem responsavelmente e dirigiu-se, sobretudo, aos mais novos: “especialemente as gerações jovens, que são chamadas às urnas pela primeira vez, sintam como sua principal responsabilidade contribuir para a edificação do bem comum, através duma participação livre e consciente no voto”. E, à luz da Doutrina Social da Igreja, “a política deve ser sempre entendida, não como apropriação do poder, mas como forma mais elevada de caridade e, por conseguinte, do serviço ao próximo dentro duma comunidade local e nacional”.
Francisco lamentou que existam no mundo mais de 360 milhões de cristãos “!que sofrem um alto nível de perseguição e discriminação por causa da sua fé e que continue a aumentar o número dos que são forçados a fugir das suas terras de origem".
O “grande hino à paz” da JMJ Lisboa
O caminho da paz passa pela educação e são conhecidas as preocupações do pontífice com o futuro das gerações jovens. No entanto, apesar das múltiplas dificuldades do contexto mundial, o recente encontro mundial de jovens, do verão passado em Lisboa, foi considerado um grande sinal de esperança.
"Permanece viva em mim a recordação da Jornada Mundial da Juventude realizada em Portugal no passado mês de agosto. Ao mesmo tempo que volto a agradecer às Autoridades portuguesas, civis e religiosas, o empenho posto na organização, conservo no coração aquele encontro com mais de um milhão de jovens, provenientes de todas as partes do mundo, cheios de entusiasmo e vontade de viver”, disse o Papa aos diplomatas.
“A sua presença foi um grande hino à paz e o testemunho de que a unidade é superior ao conflito e que é possível desenvolver uma comunhão nas diferenças”, rematou.