O mundo costumava ficar embasbacado com os leilões multimilionários de famosos quadros, de mestres como Da Vinci, Salvador Dalí, Pollock ou Picasso, questionando a subjetividade do valor pago por uma obra de arte. O debate agora é em torno de arte digital, não só sobre a eterna questão "o que é arte?", mas antes sobre a sua relação com criptomoedas e sobre NFT - e como isto está a resultar na venda de imagens de tweets e gatos por milhares de euros.
Na semana passada, um ficheiro JPG foi leiloado por 58 milhões de euros (69 milhões de dólares) pela leiloeira Christie’s. Uma imagem, que podemos fazer download em qualquer momento, como fizemos para ilustrar este artigo. E não, a imagem que transferimos não vale 58 milhões de euros.
A imagem em questão chama-se “Everydays: The First 5000 Days”, do artista Mike Winkelmann, conhecido como Beeple, e consiste numa colagem digital de todas as fotografias e imagens que o artista publicou nas redes sociais, todos os dias, desde 2007.
A imagem foi vendida como um ‘token’ não-fungível (NFT, na sigla em inglês), um conteúdo digital transacionado através de criptomoedas e da tecnologia de blockchain, que garante a autenticidade e propriedade da obra.
NFT, blockchain, criptomoedas e gatos é uma combinação estranha, mas que pode ser explicada.
As partes seguintes desta explicação envolvem falar um pouco de criptomoedas. Os gatos aparecem mais à frente.
Afinal, o que são NFT?
A venda e compra de NFT (do inglês "nonfungible token") explodiu com a pandemia, com artistas e colecionadores a terem de arranjar novas formas de transacionar arte. Ao mesmo tempo, o mundo das criptomoedas tornou-se cada vez mais famoso e acessível.
Vamos por partes. Primeiro em português.
"Fungível" é algo que pode ser substituído ou usado. Como dinheiro. Algo que não seja fungível não pode ser substituído (como por exemplo, um quadro de Salvador Dalí ou aquele cromo raro do Eusébio ou do Maradona, por exemplo).
De volta aos NFT.
Os NFT são algo que é verificado através de blockchain, uma tecnologia que utiliza uma rede de transações digitais para provar a autenticidade e propriedade de um determinado conteúdo. Catalogar uma obra no mercado digital como um NFT dá a garantia ao comprador de que a sua propriedade é única e original, mesmo que essa imagem possa ser reproduzida ad eternum (como foi, aliás, para ilustrar este artigo).
De uma forma mais simples: toda a gente pode ter uma impressão do "Guernica", de Pablo Picasso. Mas apenas uma pessoa pode ter o quadro em si (neste caso, a "pessoa" é o Museu Rainha Sofia, em Madrid, só para ficar esclarecido).
Todos podemos ter uma cópia, mas só há um original. E no caso dos NFT, o criador original até pode ficar com direitos de autor.
A relação com as criptomoedas
A loucura por NFT comprados através de blockchain tem crescido e há cada vez mais conteúdos criados e transacionados exclusivamente na internet.
O crescimento destes conteúdos acompanha o investimento em criptomoedas. Em fevereiro, Elon Musk, o bilionário dono da Tesla, investiu 1,5 mil milhões de dólares em criptomoedas.
Por entre alertas de que estava a ser criada uma bolha especulativa, sem controlo ou regulação, o mercado reagiu positivamente e o valor total de criptomoedas no mundo disparou para três biliões de dólares - logo a seguir, o mercado das moedas digitais influenciou o investimento em NFT, que ultrapassou o investimento em obras de arte tradicionais.
Como exemplo, o próprio Beeple (que só entrou no mundo dos NFT há cinco meses) criou um vídeo de dez segundos - uma montagem chamada "Crossroad", de transeuntes a passar em frente ao corpo nu e grafitado de Donald Trump - que foi comprado inicialmente por um colecionador por 67 mil dólares, e mais tarde vendido por 6,6 milhões de dólares.
Esta íntima relação com as criptomoedas também pode atrasar o investimento em NFT. Em 2018, quando o investimento em criptomoedas abrandou consideravelmente, a transação de NFT também ficou praticamente paralisada.
Um fenómeno que começou com gatos digitais e saltou para as leiloeiras digitais
A compra e venda de NFT não é algo novo, apesar da explosão deste fenómeno ser mais recente. A tecnologia começou a espalhar-se aos poucos durante a década passada e, em 2017, atingiu o seu primeiro pico de popularidade, precisamente quando o valor de criptomoedas, como o Bitcoin, explodiu.
Nesse ano, nasceu um site chamado CryptoKitties, que permitia pessoas comprar imagens digitais de gatos através de criptomoedas (avisámos que íamos falar de gatos).
A tecnologia de blockchain permitia que os donos das imagens dos gatos aclamassem os seus gatos como únicos e originais, e a imagem mais rara foi vendida por mais de 100 mil dólares.
Desde então, cresceram também o número de sites e páginas especializados na transação de NFT. Os sites mais conhecidos, como Open Sea, Nifty Gateway, Super Rare e Makers Place, tornaram-se autênticas leiloeiras digitais, movendo milhões de dólares em moeda digital.
Segundo o relatório NFT Report 2020, publicado pelo L’Atelier BNP Paribas e pelo site Nonfungible.com, só em 2020 o mercado de NFT cresceu 299%, valendo 250 milhões de dólares. O número de leilões multimilionários já este ano faz prever um crescimento ainda maior até ao final de 2021.
Quanto à Christie's, a leiloeira tradicional mais conhecida, o leilão da montagem de Beeple não é a primeira aventura no mundo dos NFT (apesar de ser a primeira obra leiloada num formato puramente digital). Em Outubro de 2020, a Christie's leilou por mais de 131 mil dólares uma obra composta por um quadro e uma imagem digital, chamada “Block 21”, da série “Portraits of a Mind” de Robert Alice.
Mas afinal isto é arte ou não?
A resposta mais simples e básica é: não. Mas a conclusão será sempre subjetiva, como é sempre que falamos de arte.
Os NFT são, para simplificar ao máximo a sua definição e para não questionar a minha objetividade, uma tecnologia que permite autenticar arte. O que não quer dizer que o que é autenticado seja, na verdade, arte. Isso ficará sempre ao critério de quem vê.
Mas a verdade é que a possibilidade de se autenticar e leiloar qualquer tipo de conteúdo abriu portas à discussão sobre o estado da arte. E abriu também portas à venda de conteúdos... duvidosos.
Por exemplo, o fundador do Twitter, Jack Dorsey, leiloou o seu primeiro tweet na rede, uma publicação de 21 de março de 2006, por mais de dois milhões de euros (2,5 milhões de dólares). Dorsey anunciou que o valor será usado em ações de caridade.
Mas a questão que se coloca neste caso é: pode uma publicação numa rede social ser considerada arte? Pode o dono deste NFT ser considerado um colecionador?
Vamos a outro exemplo que deverá alimentar ainda mais o debate: Logan Paul, um dos youtubers mais famosos do mundo, vendeu clipes de vídeos seus como NFT por 20 mil dólares.
Portanto, para simplificar: alguém gastou 20 mil dólares para ser proprietário de uns segundos de um vídeo que já existe no Youtube, já foi visto por milhões de pessoas e será visto por muitas mais.
No mundo da música, há também quem esteja a usar NFT para colmatar as quebras de rendimento provocadas pela pandemia. Os Kings of Leon, por exemplo, lançaram o álbum "When You See Yourself" em três formatos diferentes de NFT.
Voltando ao mundo da arte visual, além dos gatos que falamos há pouco, uma série de 10 mil personagens criadas através de um algoritmo, chamadas "CryptoPunks", são as imagens mais procuradas em leilões de NFT. A imagem mais valiosa, a "CryptoPunk 7804", foi vendida por 7,8 milhões de dólares na moeda digital Ethereum, tornando-se na mais valiosa obra de arte gerada exclusivamente por um computador.
Finalmente (e porque queremos mesmo voltar a falar de gatos), a NBA, a maior liga de basquetebol do mundo, juntou-se à empresa Dapper Labs - a tal que criou o site de venda de gatos digitais - para criar um mercado chamado "NBA Top Shot", que permite a venda de clipes de vídeos de "highlights" (momentos-chave de jogos, como afundanços ou assistências) de jogadores como se fossem cromos de jogadores, através de NFT.
Segundo o site Cryptoslam, um site que monitoriza os preços de NFT, as vendas destes clipes já atingiram os 388 milhões de dólares em criptomoedas - por comparação, as vendas de "cripto-gatos" chegaram até 32 milhões de dólares.