No dia em que nos EUA se inaugura a presidência de Joe Biden, em Portugal prepara-se a reeleição de Marcelo Rebelo de Sousa. Se se conhecessem, seriam decerto amigos, porque são ambos amáveis e afetuosos; e a “direita social” de Marcelo não estará muito longe do democratismo moderado de Biden. A diferença está no contexto. Biden é, ou de Biden se espera, uma profunda renovação do clima político de guerrilha ideológica que culminou no assalto ao Capitólio, o epitáfio vergonhoso da presidência Trump. Quanto a Marcelo, é verdade que os segundos mandatos tendem a revelar um presidente mais crítico e interventivo, e a dificílima conjuntura em que Portugal está mergulhado forçará, decerto, uma “magistratura de influência” mais visível. Mas não se espera que a eleição presidencial de domingo mude drasticamente o estilo de Belém ou, por ora, o cenário político português. Isto dito, e olhando as campanhas dos candidatos, há, contudo, alguns aspetos a relevar.
O primeiro aspeto, de que pouco se fala, é o posicionamento do universo PS. Ana Gomes é uma candidata de desforço pessoal, querendo representar um espaço que nela não se quer fazer representar. O PS oficial, o de António Costa, não quis um candidato seu porque gosta e precisa de navegar no centrismo, arrastando a extrema-esquerda para acordos parlamentares e tentando cooptar algum do centro-direita, presidente incluído. O argumento será: se a coabitação correr bem, Marcelo foi eleito com a ajuda do PS; se azedar, o presidente traiu a parte da esquerda que votou nele. E é esta tentativa socialista de empalmar o presidente que gera no eleitorado natural de Marcelo alguma desconfiança, desgosto e desafeição. Ainda assim, é importante relembrar que a vitória de Marcelo será uma vitória da direita - e um garante de que a voragem socialista não engolirá uma das últimas instituições que ainda lhe escapam.
O segundo aspeto transcende, na verdade, as presidenciais e é uma tendência que possivelmente se reforçará. As fragilidades e as fissuras da democracia, que são pré-pandémicas, mas que agora se agudizam, estão a colocar a descoberto um mar de protesto inorgânico. Ora o monopólio do protesto, que tradicionalmente pertencia à extrema-esquerda, fragmentou-se e muito dele transferiu-se para o Chega! de André Ventura, um partido e um candidato inclassificáveis para lá dos rótulos de populista e de oportunista. Poder-se-á não gostar dele, mas o seu crescendo revela um veio de criticismo ao “sistema” que vai crescer - e combater o Chega! com ameaças de ilegalização é inútil, senão mesmo contraproducente. Marisa Matias e João Ferreira não crescem nas sondagens e serão minguados na urna, porque falam só para os seus eleitorados… e alguns desses eleitores foram protestar para outro lado.
O terceiro aspeto, finalmente, provém da maneira como Tiago Mayan Gonçalves, o candidato da Iniciativa Liberal, colocou no debate público essa esdrúxula “coisa” que é o liberalismo em Portugal, fazendo a pedagogia da libertação da sociedade civil, de onde não se exclui a defesa de um Estado presente, mas como árbitro e não como jogador, como parceiro das energias individuais e não como patrono asfixiante de tudo o que mexe ou pensa. Marcelo, porque é Marcelo, e Mayan, como outras vozes dentro ou fora da Iniciativa Liberal, mostraram, nesta estranha campanha e terríveis tempos, que talvez seja por eles que passa o robustecimento da minguada direita portuguesa, como alternativa possível tanto à modorra das esquerdas instaladas, quanto a um populismo radical que talvez um dia, incontrolável, venha a devorar politicamente o próprio André Ventura.