A pior estratégia é não ter estratégia. Antes da pandemia, o Serviço Nacional de Saúde tinha graves problemas que, já nessa altura, exigiam um plano de ação “musculado e continuado, que tardava em chegar”.
Oito meses depois do novo coronavírus ter chegado a Portugal, o atual e os antigos bastonários dos médicos alertam que, agora, “não há tempo a perder”: os meses que se aproximam vão exigir uma capacidade de resposta do SNS muito superior para lidar com a pandemia, mas também com todos os outros doentes não-Covid, que ficaram um pouco esquecidos durante este período.
Para Miguel Guimarães, atual bastonário da Ordem dos Médicos, o reforço da resposta do SNS é urgente, porque “temos de estar preparados para defender os doentes todos e não pode voltar a acontecer o que aconteceu na primeira onda, em que suspendemos, por decisão da ministra, a nossa atividade programada para responder aos doentes Covid”.
Desde então, segundo números públicos, houve 100 mil cirurgias atrasadas no SNS, perto de um milhão de consultas hospitalares que não se realizaram, assim como cinco milhões de consultas presenciais nos cuidados de saúde primários. Já para não falar dos milhares de rastreios e dos cerca de 17 milhões de meios e exames de diagnóstico e terapêutica.
Na sequência deste “apagão” nos cuidados de saúde, o número de óbitos não-Covid disparou. Houve mais sete mil mortos entre março e setembro do que a média de igual período dos últimos cinco anos.
“Agora não podemos voltar a fazer isso”, sublinha Miguel Guimarães à Renascença, alertando que já se está a ir pelo mesmo caminho.
“Já está a começar a acontecer. Ontem, o Hospital de São João já anunciou que vai suspender blocos operatórios”, recorda. E é por isso que é necessária e urgente uma mudança de rumo na estratégia do Serviço Nacional de Saúde.
Que soluções? Um exemplo.
Os cuidados de saúde primários foram desviados para o combate à Covid-19. E os médicos de família, que antes garantiam esses cuidados, estão agora a desempenhar outras funções: estão a seguir os doentes que estão em casa (TraceCovid), estão a ser requisitados para os lares, fazem as Áreas Dedicadas Covid...
“Tudo tarefas que lhes ocupam tempo e que estão a desviá-los das suas tarefas habituais, o que está a provocar um impacto brutal no próprio SNS”, aponta Miguel Guimarães.
“A porta de entrada no SNS, que são os cuidados de saúde primários, está a ser ocupada com outras funções que não as habituais”, reforça.
Por isso, diz o bastonário da Ordem dos Médicos, “a Sra. ministra tem de libertar os médicos de família para eles fazerem o que sempre fizeram, para que o SNS possa funcionar” e contratar outras equipas para desempenhar essas outras funções.
“Não podemos voltar a deixar alguém ficar para trás”, sublinha.
Também à Renascença, Germano de Sousa, outro signatário da carta aberta, sublinha a necessidade de recuperar os atrasos nas cirurgias, exames e consultas de doentes não-Covid.
“Na realidade, não só é necessário reforçar o Serviço Nacional de Saúde, como recorrer a tudo o que é possível recorrer para que rapidamente consigamos recuperar os atrasos que se vão refletir inevitavelmente na saúde e sobretudo na mortalidade por causas não-Covid”, sublinha.
“Sra. ministra, estamos preocupados”
Os signatários da carta aberta a Marta Temido revelam a sua preocupação. “Já estamos na segunda semana de outubro, em pleno outono, e o que aconteceu, o que mudou de substancial na organização das pessoas e dos meios? Onde está o necessário e imprescindível plano — discutido, alterado e devidamente aprovado — para os dias e meses difíceis que enfrentamos?”, questionam no documento.
“Sra. ministra: estamos preocupados e compete-nos fazer esse alerta público. É vital que haja uma mudança imediata de rumo na estratégia do SNS. O SNS está novamente exposto a uma disrupção grave no seu funcionamento”, escrevem Miguel Guimarães, Germano de Sousa, José Manuel Silva, Pedro Nunes, Carlos Ribeiro e António Gentil Martins.
“Não há tempo a perder. Este é o momento de o SNS liderar uma resposta global, envolvendo os setores privado e social, que permita aumentar o acesso a todos os cuidados de saúde com uma resposta inequívoca a todos os doentes”, defendem.
Na opinião do atual e antigos bastonários da Ordem dos Médicos, “é preciso mudar já. É preciso um investimento de grande envergadura que reforce fortemente o SNS. Mas, no imediato, não basta. Os doentes precisam de uma resposta agora, pelo que não podemos prescindir de uma visão de conjunto”.