Nem as temperaturas negativas pararam a maior greve de enfermeiros do NHS, o serviço nacional de saúde britânico. A greve chegou a Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte, mas não englobou os enfermeiros da Escócia, em negociações avançadas com o governo de Nicola Sturgeon.
No centro de tudo estão os aumentos salariais, cujas negociações subiram de tom devido à inflação, que chegou aos 11% em Inglaterra.
Depois da aprovação da greve, no início de novembro, as negociações caíram no início desta semana e dezenas de milhares de enfermeiros avançaram mesmo para a greve, saindo à rua em protesto. O governo diz-se “desapontado” com a greve. Só em Inglaterra, cerca de 25% dos hospitais aderiram à greve, com o governo inglês a dizer que cerca de 70 mil consultas e operações serão perdidas ao longo dos dois dias de protesto.
O que exigem os sindicatos?
A Royal College of Nursing, o principal sindicato dos enfermeiros, pede um aumento de 19%. Este ano os enfermeiros já tinham recebido um aumento de cerca de 4%, mas o sindicato defende que os aumentos têm de ser superiores à inflação, porque os salários atuais são um obstáculo à contratação e retenção de enfermeiros. Depois de anos sem aumentos, Pat Cullen, líder da Royal College of Nursing, diz que “20% dos salários dos nossos enfermeiros foi perdido ao longo da última década”. No entender do sindicato, só esses 19% exigidos colmatam as perdas do passado. Essa é uma exigência que o Governo não está disposto a aceitar. Hoje, com os enfermeiros nas ruas, o Ministro da Saúde, Steve Barclay, disse que apesar de o Governo estar “muito agradecido” pelo trabalho dos enfermeiros esse aumento “não é sustentável, tendo em conta os vários desafios económicos que enfrentamos”.
Vítor Marques vive no Reino Unido desde 2015, com um intervalo em 2018 quando esteve na Irlanda. Atualmente, trabalha no bloco de Neurocirurgia do Hospital Universitário de Oxford e fez greve. Defende que “apesar dos enfermeiros ganharem melhor que em Portugal, um enfermeiro em início de carreira ganha quase tanto como um trabalhador não qualificado”. Em Inglaterra um enfermeiro em início de carreira ganha cerca de 27 mil libras anuais. Para Vítor, o aumento dos salários serve para “valorizar o trabalho dos enfermeiros", relembrando que “nos últimos anos os salários foram congelados ou aumentados abaixo da inflação”. O enfermeiro português reforça que não se pode esquecer que se trata de uma profissão de risco, lembrando os “colegas que morreram devido aos riscos associados” durante a pandemia.
Em Londres, o Hospital de Watford onde trabalha Cláudia Ferreira da Costa, não aderiu à greve. Depois de se ter feito um questionário “foi decidido que o hospital não ia participar”. Cláudia, que trabalha no Reino Unido desde 2019, tem estado a trabalhar na campanha de vacinação da gripe, mas por norma trabalha nos serviços de urgência. Concorda com a greve, dizendo que os salários devem ser mais altos: “somos mais bem pagos que em Portugal, mas o trabalho que fazemos não é reconhecido, mas sinceramente acho que esse é um problema geral”. A questão do reconhecimento foi uma constante do dia, nos cartazes, nas entrevistas dadas por enfermeiros, e no sentimento destes dois enfermeiros portugueses.
As exigências, no entanto não se ficam pelo aumento de salários. São também precisas muitas contratações, num serviço nacional de saúde sob pressão e com falta crónica de profissionais. Vítor lembra que, quando chegou ao Reino Unido, o NHS “tinha uma grande massa de profissionais e produtos que chegavam da União Europeia”. Atualmente diz que existe uma grande falta de profissionais, quando “antigamente a cada semana chegavam colegas portugueses, espanhóis ou italianos, agora recrutam em pouca quantidade e com muita burocracia - por isso já não é tão atrativo vir para o Reino Unido”. Não são só os profissionais que encontram problemas com a burocracia criada pelo Brexit, e Vítor fala em falta de equipamentos “porque ficam retidos na fronteira, as coisas ficaram mais caras e temos de mudar para fornecedores que podem não ter tanta qualidade”.
A preocupação com a falta de profissionais de saúde é partilhada por Cláudia, que diz que “a pressão sobre os serviços de emergência é enorme” e dá o exemplo de dias em que “onde deviam estar a trabalhar 3 enfermeiros e 2 auxiliares estavam 2 enfermeiros e 1 auxiliar”, levando Cláudia a fazer a primeira pausa às 17h, dez horas depois de começar o turno. Fala também numa “desorganização” na ressaca da pandemia. Por tudo isto, diz mesmo que “as condições são cada vez piores” desde que chegou ao Reino Unido. Uma ideia partilhada por Vítor que, ainda assim, diz que as condições são melhores do que em Portugal, por se “apostar mais na formação”.
Em luta, sem esquecer os doentes
Os testemunhos sobre o debate moral entre o apoio aos pacientes e a luta pelas suas condições acumularam-se ao longo dia. Pat Cullen falou num “dia trágico para a enfermagem, para os pacientes e para o NHS”. A decisão de estar na rua não é tomada de ânimo leve. Em entrevista à BBC, Daniella McLaughlin, enfermeira em Liverpool, disse ter sido “a mais difícil decisão da carreira” e que de manhã não conseguiu comer o pequeno-almoço. “Não me tornei enfermeira para fazer greves”, concluiu.
Durante as 12 horas da greve, no entanto, os serviços mínimos nos hospitais participantes foram garantidos. Vítor garante que no seu serviço “atendemos tudo o que são cirurgias de emergência, tudo aquilo que for necessário para o bem do doente nós fazemos”. Foi também por isso que, pouco depois de falar à Renascença, abandonou a greve e voltou ao hospital para assegurar os serviços mínimos.
Vítor acredita que “que o público ainda apoia os enfermeiros” pelo trabalho feito na pandemia e os números de um inquérito da Ipsos confirmam isso - mais de metade dos inquiridos apoia a greve, mas 80% dos britânicos estão preocupados com a capacidade do NHS em cuidar dos pacientes durante a greve. Apesar de no hospital de Cláudia não se ter feito greve, a enfermeira também defende que se esse fosse o cenário “o bem-estar do paciente seria sempre assegurado pelos serviços mínimos”.
O que se segue?
As negociações estão paradas. O sindicato defende os 19% exigidos, o Governo não pareceu muito interessado em negociar. Vítor percebe que o Governo “está um pouco encurralado, há a greve dos correios, dos transportes, dos controlos de passaportes nos aeroportos” e que por isso não se pode “comprometer com todas as greves”. Por isso, entende que “terá de haver um meio termo” numa altura em o Governo está a pagar a fatura da pandemia e dos apoios dados nos períodos de confinamento. O meio termo, diz, “já seria muito bom”.
Entretanto, no dia 20 de dezembro os enfermeiros voltam a parar. E se para lá da greve não houver acordo? “Estou disponível para fazer greve de novo”, diz Vítor. Já Cláudia diz que a decisão no seu hospital vai partir dos sindicatos, até porque “cá tenho medo de fazer as coisas sozinha”, temendo que lhe possa limitar as oportunidades de progressão de carreira. “Não devia ser assim, mas acontece”, acrescenta. Ainda assim, tem esperança numa resolução, relembrando que “houve aplausos, houve essas coisas todas, mas não chega”. Um cartaz na rua dizia “as palmas não pagam contas”. A luta pelo aumento de salários continua.