Morrer só, ligado a uma máquina - a inexorável realidade que se abate diariamente sobre muitas das vítimas de doenças infetocontagiosas. Realidade que a pandemia que varre o mundo por estes dias colocou diante dos nossos olhos, com a mesma frieza com que o novo coronavírus ataca de uma forma tanta vezes letal, sobretudo, os mais fragilizados. São dezenas em Portugal, por agora, centenas noutros países ou, ainda noutros largos milhares, como aqui ao lado em Espanha e Itália.
Em cada morte um ser humano, em cada pessoa uma família que vê partir o ente querido sem um derradeiro abraço e tendo, talvez, como última manifestação de amor, o olhar impotente de um médico ou enfermeiro, por detrás de uma máscara.
"São dois problemas", diz à Renascença Amaro Gonçalo Lopes, padre com quase 30 anos de sacerdócio e que desde 2008 se entrega de alma e coração à Paróquia da Senhora da Hora, em Matosinhos.
"Um problema é quem está ali a morrer e não tem essa presença junto a si. Nós padres até podemos ir, desde que nos equipemos quase astronauticamente como os profissionais de saúde. Ainda não tive nenhuma situação dessas, mas, se tiver, vou com as devidas precauções. Mas há também o outro lado do problema, o das famílias", e não é apenas no momento da morte, exemplifica o padre Amaro Lopes.
"Há dias uma senhora ligou-me e disse-me que o funeral do marido não teve lá ninguém, coisa que o marido não merecia. O que lhe sugeri foi que, quando passar esta crise, teremos que fazer alguma homenagem póstuma, até do ponto de vista celebrativo. Seria o reconvocar da família para um momento de oração, celebração e memória. As famílias precisam desse momento para elaborar o seu luto", sublinha.
Amaro Gonçalo Lopes dá testemunho de um outro caso, ocorrido na passada terça-feira, em que o luto da família, tendo seguramente existido, não se expressou na hora da cerimónia fúnebre. "Supostamente não seria uma vítima de Covid-19, mas a família não apareceu. Eram quatro filhos e nenhum quis comparecer. Aquilo deu-me volta ao estômago. Tenho a capela mortuária aqui mesmo ao lado da residência paroquial e pedi ao responsável da agência funerária que parasse aqui, frente à minha casa, para eu fazer uma oração de bênção e de despedida, porque eu próprio me sentia altamente incomodado. Como é que uma pessoa, que até levava uma vida cristã, não tem ali ninguém da família, fosse por medo ou por outra razão qualquer? Pois, estive eu, no sentido de dizer que a Igreja está presente", conta o padro Amaro.
É nesta presença, no momento da morte e do luto, que o sacerdote entende que a Igreja deve ser testemunho de entrega, acima de qualquer outro gesto solidariedade material.
"Não é que não tenhamos o dever de concretizar a nossa caridade na partilha e estamos a fazê-lo de muitas maneiras, não apenas em situações de emergência, mas também em permanência. Mas a Igreja não pode descuidar a sua missão específica, que é ser uma instância de oferta do sentido da vida, de consolação, de esperança; este é o nosso papel mais importante", define.
Enterrar ou cremar?
"Em Matosinhos, a prática da cremação já está bastante generalizada. Segundo os últimos indicadores que me deram andará em cerca de 45% dos casos", revela o padre Amaro Lopes, que confessa tratar-se de uma solução sobre a qual sempre se questionou.
"É algo que não me coloca problemas do ponto de vista da Fé na Ressurreição, mas, se quisermos utilizar uma palavra mais cara, coloca um problema antropológico, isto é, da nossa dimensão humana. A desaparição tão instantânea dos restos da pessoa é um processo tão rápido que não é acompanhado da rapidez com que elaboramos o luto. Já quando optamos por depositar o corpo numa sepultura, temos como que a ideia de uma progressiva transformação do corpo na terra. Na cremação há uma diluição instantânea, em que fica a ideia de um corpo que se dilui na água, no ar, no fogo ou em qualquer outro elemento. Há muita gente que resiste a isto e eu percebo bem essa resistência. Eu próprio não prezo a solução, não porque tenha algum problema dogmático ou doutrinal, até porque a Ressurreição é a consumação da nossa vida e não se me põe o problema da carne e dos ossos, não é isso. É que o método tradicional se compagina melhor com a elaboração do nosso luto", argumenta.
O padre Amaro Gonçalo Lopes, no atual contexto pandémico de Covid-19, adverte ainda para uma outra realidade: "Quando temos uma cremação imposta por uma necessidade sanitária, por um imperativo de saúde pública, para as pessoas para quem esta solução já era violenta, ela torna-se ainda mais violenta".
Em cada morto, um suspeito de Covid-19. Funerárias sem aconselhamento da DGS
"Infelizmente para nós, cada falecido é encarado como um caso suspeito", confessa à Renascença, Nelson Santos, responsável por uma agência funerária situada no bairro de Alvalade, em Lisboa. "Sou-lhe muito franco, eu não confio que indo a um hospital levantar um corpo, essa pessoa não esteja contagiada pela Covid-19. O que se diz é que não há ‘kits’ suficientes para testes e nada me garante que muitas das pessoas que dão entrada nos hospitais fiquem por testar", diz este agente funerário, antes de revelar os cuidados tidos com os cadáveres.
"Utilizamos um produto bactericida e viricida, que aplicamos no interior das urnas, para tentar salvaguardar que, no manuseamento dos corpos, não haja inadvertidamente qualquer possibilidade de contágio", detalha. O risco é grande e cada agência funerária, à falta de orientações das autoridades sanitárias, trata de fazer o melhor que sabe e pode.
"Desenrascar é a palavra certa. Nós próprios temos que ir à procura de informação, porque nenhuma entidade, nem o Ministério da Saúde nem a Direção Geral de Saúde (DGS) emanaram algo a explicar às agências funerárias, como lidar com isto. Seria importante, porque esta é uma situação nova, delicada, e que pode apanhar muitas agências funerárias desprevenidas. Se analisarmos, 80% das agências são empresas familiares, em que muitas vezes faltam equipamentos de proteção individual e falta capacidade para lidar com casos destes", ressalva.
Nesta agência de Lisboa, que integra um grupo de funerárias, foi criado um plano de contingência. "Para não expor demasiado os trabalhadores, temos duas equipas a trabalhar em regime de alternância, devidamente protegidas. Evitamos ir a casa e só tratamos do funeral com uma ou duas pessoas, tal como estamos a desaconselhar os velórios, para que não haja concentração de familiares e amigos nas capelas mortuárias, até porque muitas delas são pequenas e com ventilação deficiente", diz Nelson Santos.
Mais urnas em "stock" para prevenir aumento de funerais
"Perante aquilo que começámos a observar a meio desta crise em Itália e em Espanha, logo no início pedimos aos nossos fornecedores para nos colocarem aqui uma quantidade substancial de urnas para podermos, assim, dar algum conforto às famílias na realização dos funerais. Mas se atingirmos os números a que estamos a assistir em Espanha acredito que nenhuma agência terá capacidade para responder a tantos funerais", acentua este empresário do setor.
Num cenário de aumento significativo do número de vítimas mortais pela Covid-19, o recurso será cremar os corpos, o que no caso desta agência de Alvalade está longe de constituir um alteração significativa de procedimentos, assinala Nelson Santos: "85% a 90% dos nossos clientes já procuram urnas para esse fim. Nesta situação, a sugestão da DGS é para que se proceda à cremação e é também o que nós continuamos a sugerir aos nossos clientes".
Tal como nos supermercados, também houve quem tentasse “açambarcar” urnas
"Tivemos algumas tentativas de açambarcamento, clientes que compram dez urnas e tentavam comprar 40", revela, à Renascença, Luís Mendes, responsável comercial de um fabricante de urnas da Figueira da Foz. "Pusemos um travão nisso, fazendo ver que chega para todos, até porque as informações e a expetativa que temos é que a Covid-19 não representará um aumento muito significativo do número de funerais. Na realidade, em média temos em Portugal 105 a 108 mil óbitos por ano. Se nesta crise houver mais 500 ou mil óbitos, no máximo, não terá grande impacto. A dividir por cerca de duas mil agências funerárias haverá muitas que não farão um único funeral a mais, por conta da pandemia. No entanto, o mercado está com procura e temos, inclusive, clientes não habituais, que nos questionam sobre disponibilidade de entrega", diz.
Luís Mendes explica que a empresa, “assim que percebeu o que se estava a passar na China e na Itália, aumentou a produção em duas horas suplementares, por dia”.
Também a matéria-prima, neste caso indispensável à produção, foi devidamente acautelada. "Antecipámos o problema e armazenámos matéria-prima de forma a podermos trabalhar durante dois meses sem necessidade de comprar e sem falhas, para uma produção diária de 25 a 30 urnas. Também fizemos um ensaio de produção e concluímos que, num modelo menos elaborado, com menor exigência de mão-de-obra, poderemos executar entre 50 a 70 urnas por dia", calcula.
Meia centena de urnas diárias é também a capacidade máxima de produção de Manuel Marinho, com fábrica em Amarante. Nesta unidade, 26 trabalhadores asseguram o fabrico das urnas, por agora sem recurso a horas extra. Já o colaborador da área comercial, por ter idade superior a 70 anos, foi aconselhado a não comparecer na fábrica, desenvolvendo a partir de casa, por telefone ou e-mail, os contactos relacionados com a sua atividade específica.
Manuel Marinho explica à Renascença que desde janeiro que a unidade estava a produzir em maior quantidade. "É um mês em que habitualmente há um pico de produção e este ano voltou a verificar-se. Nesta fase, esse pico mantém-se, mas pode-se dizer que a procura é idêntica à de outros anos", anota.
Este fabricante admite, porém, estar a trabalhar para "ter mais urnas para cremação em ‘stock’, porque, se houver algo de muito anormal, não haverá outra alternativa que não seja cremar".
Neste tempo de incerteza lidar com a morte é outro dos lados da pandemia. O padro Amaro Gonçalo Lopes recorda que a Igreja, como sempre, "é uma instância de oferta do sentido da vida, de consolação, de esperança".