Marcelo Rebelo de Sousa exprimiu na quarta-feira em Nova Iorque três desejos que são simultaneamente três apreensões quanto à candidatura de António Guterres a secretário-geral das Nações Unidas.
Em conversa com os jornalistas na Quinta Avenida de Manhattan durante uma passeata inesperada que decidiu fazer de manhã e que incluiu uma visita a uma famosa livraria da cidade, o presidente da República enumerou três factores que, na sua opinião, podem ser decisivos nesta fase final da selecção do candidato, a saber:
- que na próxima votação do dia 26, a última em que os votos dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança não se distinguirão dos restantes, Guterres possa manter a “liderança clara” da corrida, “os sinais são esses”, disse;
- que a decisão final seja tomada em Outubro;
- que não haja nenhum factor na situação internacional que perturbe o statu quo e leve a um afrontamento entre os Estados Unidos e a Rússia.
Se o primeiro ponto é a expressão de uma probabilidade, já os outros dois veiculam preocupações que pairam sobre a candidatura de Guterres. O Conselho de Segurança deseja ter o assunto resolvido em Outubro, até para dar ao novo secretário-geral teve suficiente para se preparar para o cargo, cuja posse será a 1 de Janeiro de 2017.
Se, de facto, a escolha do nome a propor à Assembleia Geral não for feita em Outubro isso significará que se entrou num impasse no seio do Conselho de Segurança e os impasses nestes casos não são de bom augúrio. Advirão certamente de discordâncias profundas sobre o nome que liderou as votações e isso pode levar a um compromisso que aponte para uma escolha alternativa.
Suponhamos que uma das potências com direito de veto o exerce de forma muito clara em votações sucessivas. Se isso significar uma intransigência em relação a Guterres – algo de que não há qualquer indício neste momento – a prática habitual nas eleições de secretários-gerais é a de desistir do nome vetado e tentar encontrar um nome alternativo que gere um consenso mínimo, ou que pelo menos não seja obstaculizado por ninguém.
Antes de procurar esta saída para o impasse, contudo, há outras formas de negociar a hipotética intransigência de um país. Como por exemplo dar-lhe contrapartidas noutras áreas de modo a que ele desista do veto.
Foi o que sucedeu aquando da eleição de Kofi Annan. A França vetou o nome do ganês, mas após muita negociação acabou por lhe ser dada a presidência das operações de paz e o veto caiu.
Claro que se o veto provier dos Estados Unidos ou da Rússia a probabilidade de acabar por ser encontrado um nome alternativo é substancialmente maior. Foi o que sucedeu com a reeleição de Butros Ghali à qual os EUA se opuseram com firmeza e o diplomata egípcio fez apenas um mandato.
Tudo isto são riscos a que a candidatura de Guterres está em teoria exposta e que é inevitável correr quando se trata do intrincado jogo diplomático internacional.
Afrontamento EUA-Rússia
Mas aquilo que Marcelo Rebelo de Sousa afirmou no seu terceiro ponto é algo diferente e no fundo é a expressão do receio de que a candidatura de Guterres seja um dano colateral da crescente tensão entre americanos e russos.
Quando o presidente português fala de “afrontamento” entre EUA e Rússia no palco internacional não se refere, obviamente, a afrontamento bélico. Refere-se sim a situações internacionais como a da Síria, a anexação da Crimeia, o conflito congelado no Leste da Ucrânia e a instalação do sistema de defesa anti-míssil pela NATO no Leste europeu que têm contribuído sobremaneira para azedar as relações entre as duas potências.
E neste contexto aquilo que Marcelo receia é que um agravamento destas tensões possa levar a Rússia a uma atitude de frontal oposição a tudo que venha do lado americano ou vice-versa. E a candidatura de Guterres poderia ser uma vítima colateral dessa atitude se surgir patrocinada por uma das duas potências. Uma política de “terra queimada” que era apanágio dos tempos da guerra fria.
Recorde-se, todavia, que americanos e russos têm sido capazes de manter um diálogo diplomático e de continuar a trabalhar em conjunto em várias áreas apesar das frontais discordâncias noutras. Um exemplo eloquente foi o acordo nuclear com o Irão em que o papel da Rússia foi muito importante ao disponibilizar-se a receber o urânio iraniano. Isto num contexto em que a guerra na Síria prosseguia com cada uma das potências em campos opostos.
É claro que apesar de exprimir estes receios, o presidente da República mantém o seu grande optimismo em relação à candidatura. Elogiou o trabalho de muitos meses da diplomacia portuguesa e reiterou ver em Guterres a pessoa certa para o cargo. Um pacificador capaz de falar com africanos, asiáticos, europeus, todos, com carisma e vocação para o cargo. “Isso é algo que não se aprende. Ou se tem ou não se tem”, disse.
Marcelo salientou ainda que a experiência de Guterres no Comissariado para os Refugiados fez dele o homem certo porque esse é o problema central da actualidade e a prová-lo está a cimeira que decorreu esta semana sobre o tema em paralelo com a Assembleia Geral da ONU.
“As Nações Unidas têm ali alguém que sabe disso e não devem perder este desafio”, afirmou o PR, que vê em Guterres um “apaixonado pela tarefa, ainda mais do que eu estou apaixonado pela minha”.
“Correu o mundo todo sem um pingo de cansaço”, sintetizou.