É a promessa de continuidade de uma arte com três séculos. A UNESCO pode aumentar esta relevância se, esta semana, da Coreia do Sul vier a notícia mais aguardada dos últimos tempos: a classificação dos Bonecos de Estremoz como Património Cultural Imaterial da Humanidade.
Elemento de divulgação da cidade, no país e no estrangeiro, esta produção artística de carácter popular pode agora chegar aos quatro cantos do mundo se, como se espera, a decisão sobre a candidatura for aprovada.
O presidente da Câmara de Estremoz não tem dúvidas de que a classificação vai “dar maior visibilidade ao país e ao concelho”. Luís Mourinha espera, também, que seja “uma oportunidade para atrair mais jovens para esta arte”.
Da mesma opinião, o ceramista Jorge da Conceição, que integra a delegação, acredita que esta classificação “vai abrir um conjunto de oportunidades diferentes, vai trazer mais mercado, mais atractividade e novos artesãos”.
Para o director técnico da candidatura, Hugo Guerreiro, o impacto “em termos mundiais vai ser enorme” já que se trata “do primeiro figurado do mundo a ser reconhecido Património Mundial”.
Uma tradição de gerações
A Renascença foi visitar a família mais conhecida pela sua ligação aos Bonecos de Estremoz – a família Alfacinha. Jorge da Conceição é a quinta geração a trabalhar na barrística.
“Eu nasci neste meio, embora não tenha feito a minha carreira profissional nesta arte”, conta o agora ceramista. “Muitas vezes saía da escola e entretinha-me em casa a ver a minha tia e a minha avó a trabalhar.”
Apesar da “grande paixão” assumida por Jorge, acabou por ir estudar para Lisboa, onde enveredou por uma carreira na área da consultoria e durante 25 anos, os bonecos ficaram arrumados numa gaveta da memória. Gaveta que voltaria a abrir em 2012, quando decidiu mudar a sua vida profissional. “Achei que abraçar este desafio dos Bonecos de Estremoz, talvez fosse aquilo que me iria dar mais prazer”, revela.
No ateliê que criou, começou a dedicar-se ao figurado, destinando o primeiro ano a reaprender o que já estava esquecido. Dois anos depois, assiste com alegria ao reconhecimento do seu trabalho.
Com a peça “Fado”, Jorge da Conceição, ganhou o primeiro prémio para a Melhor Peça de Artesanato Tradicional, na FIA – a Feira Internacional de Artesanato. “Foi um grande incentivo a continuar e estou muito satisfeito por ter regressado para o figurado”, refere o artesão, nascido e criado em Estremoz, hoje com 54 anos.
O seu dia-a-dia é repartido entre Lisboa, onde tem o seu ateliê (que, não estando aberto ao público, pode ser visitado) e Estremoz, onde está a recuperar a oficina, outrora da sua mãe, Maria Luísa da Conceição.
Diz que sente “um enorme prazer em mexer no barro” e o desafio maior não passa pela comercialização, mas, sim, por tornar-se único nesta arte. “O figurado tem a estética do autor e cada autor tem um traço próprio e eu quero que as pessoas quando olharem para as minhas peças, possam dizer: esta é do Jorge”, reconhece.
O ceramista descreve o seu trabalho como “menos popular e mais elaborado”. Jorge da Conceição quer que as suas peças tenham “correcção anatómica, com muitos detalhes, muitos pormenores e que sejam harmoniosas de ver e apreciar”.
O artesão faz as suas peças a pensar na “perfeição aliada à inovação, mas mantendo a técnica ancestral” e cada uma das suas figuras “é quase como um filho”. Pode levar entre três dias a três meses, “dependendo se são mais compostas ou mais simples”.
De oito a mil euros. Irmãs Flores vendem bonecos de todos os preços
Com loja e ateliê aberto ao público na cidade alentejana, as Irmãs Flores aprenderam a arte, deste muito novas, com a mestre Sabina, tia de Jorge da Conceição.
“Era miúda e fui aprender com a D. Sabina durante 15 anos e a partir daí toda a minha vida tem sido dedicada a esta profissão, de corpo e alma”, conta à Renascença Maria Inácia Fonseca, uma das Irmãs Flores.
Já Perpétua Fonseca lembra que é uma arte “muito trabalhosa” e só “com muito amor” é possível dar-lhe continuidade.
“Veja, montamos o esqueleto da peça, fica ali um ou dois dias e só depois é que a vestimos ficando a secar mais outro tanto”. “Entretanto”, prossegue, “vai a cozer o que demora muito tempo, atingindo os 950 graus”.
À cozedura segue-se a pintura e só depois está pronta a figura. Um processo demorado que nem sempre é compreendido pelo cliente na hora de olhar para o preço. Apesar de tudo, as Irmãs Flores procuram praticar preços acessíveis dentro do que é aceitável.
“Isto varia muito”, refere Perpétua, “pois temos peças a oito euros, outras a 400 e outras mil euros”, tudo dependendo da mãos-de-obra e da peça. “Nós temos uma procissão que tem 60 peças, por isso está a ver que os preços tem de ser ajustados de acordo com o trabalho que temos”.
No ateliê das Irmãs Flores há agora um motivo de grande alegria. É que o sobrinho, Ricardo Fonseca, optou por tornar-se artesão. À reportagem da Renascença, o jovem de 31 anos diz que “é a minha vida”.
Tudo começou há alguns anos, quando nas férias escolares, trabalhar com os Boenecos de Estremoz era uma espécie de tempos livres. Ricardo foi ganhando o gosto pela arte e hoje é um jovem ceramista admirado até pelos seus amigos, pelo facto de se ter dedicado a uma arte tão antiga e que orgulha qualquer estremocense.
É o mais jovem artesão e gostava que outros como ele, seguissem este caminho. “É preciso ter uma grande vontade, pois a aprendizagem leva muitos anos e fazer disto profissão só mesmo com muita persistência”, preconiza Ricardo Fonseca.
Uma história com vários séculos
As primeiras referências ao figurado de Estremoz são de princípios do século XVIII. De 1770, é conhecida a existência das denominadas “boniqueiras”, mulheres que faziam curiosidades e figuras de barro e que tinham um trabalho não reconhecido enquanto ofício.
“É uma arte que nasceu da necessidade espiritual do povo, nasceu a pobreza das pessoas que não tinham dinheiro para ter uma Nossa Senhora da Conceição ou um Santo António, por exemplo”, começa por explicar à Renascença, Hugo Guerreiro.
Numa terra de barro abundante e sem dinheiro para comprar os santos da devoção em talha, as comunidades aproveitam a perícia das suas mulheres na modelação do barro.
Surge, então, a peça que vai revolucionar a barrística local: o presépio. “As pessoas rezavam à cena da natividade por devoção e por isso queriam ter uma peça dessas em suas casas”, acrescenta o director do Museu Municipal, Joaquim Vermelho, de Estremoz.
Os presépios eruditos, observados nos conventos e casas abastadas, depressa foram adaptados à vivência popular das bonequeiras. Assim, na cena envolvente à da Sagrada Família nasceram os reis magos, os ofertantes regionais e um vasto reportório, como o “Pastor a comer”, o “Pastor a dormir”, a “Mulher das Galinhas”, o “Pastor com o cabrito às costas”, entre outros. Hoje estas figuras “sobrevivem” fora do presépio.
Depois de quase se ter perdido esta tradição, eis que em 1935, José Maria Sá Lemos, director da Escola Industrial de Estremoz, convenceu a artesã Ti Ana das Peles, que apenas sabia modelar “assobios”, a ensinar o que sabia da arte e a participar no processo de “ressuscitar” as figuras que já ninguém modelava desde a década passada.
Deste feliz encontro de saberes, nasce o gosto da família oleira Alfacinha pelo figurado de barro, nomeadamente Mariano da Conceição, que o transmite a alguns empregados da Olaria e a familiares directos.
“Hoje temos um conjunto de oficinas e praticantes desta arte que querem valorizar o saber e a tradição”, sublinha Hugo Guerreiro, apostado em incentivar os jovens a “aprenderem a fazer estes bonecos para que possa ser possível assegurar o futuro da barrística".
A verdade é que a produção de figurado em barro de Estremoz integra o Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, desde 2014, tendo sido preparada ao pormenor todo o processo de candidatura a Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura).
A decisão é tomada no decorrer da 12ª Reunião do Comité Intergovernamental da Organização, a decorrer na Coreia do Sul, entre esta segunda-feira e sábado.
“Os estudos que conhecemos confirmam que a técnica continua a mesma, desde o século XVII até aos dias de hoje”, assegura o também responsável técnico pela candidatura. “Através da técnica do rolo, da bola e da placa, fazia-se e faz-se o boneco ao modo de Estremoz que não se faz em mais lado nenhum”, conclui Hugo Guerreiro.