A presidente da Cáritas Portuguesa, Rita Valadas, revela em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia que 43% dos apoios do programa “inverter a curva da pobreza” são entregues a estrangeiros.
“Isto está a acontecer hoje. E já não é uma realidade de Lisboa ou dos grandes pólos. Está a acontecer ao nível das aldeias. Há uma pressão enorme”, adianta a presidente da Cáritas.
No dia em que arranca a semana Cáritas, que inclui o habitual peditório nacional, Rita Valadas sublinha o aumento da privação severa que escapa aos dados oficiais. “Temos um aumento de pessoas a chegar aos nossos serviços, com muitos tons diferentes, consoante o território, mas acho que ainda assim está longe daquilo que é a realidade”, relata.
A responsável assume preocupação porque “as pessoas estão um bocadinho a desesperançar e não querem depender de um apoio mensal e começam a afastar-se”.
Noutro plano, a presidente da Cáritas lamenta a ausência da questão da pobreza da campanha eleitoral porque no terreno “não há melhoras”.
“É impossível nós olharmos para a realidade portuguesa e não vermos e não ouvirmos o que nos vem do território que é uma situação muito complexa", sustenta Rita Valadas.
Uma das realidades que se mantém em crescendo é a dos trabalhadores pobres que Rita Valadas considera “o murro no estômago de hoje”.
“O emprego digno e o salário justo são duas coisas que não podem estar fora do panorama da discussão de politicas e da politica”, adverte.
A responsável afirma que as medidas de combate à pobreza “estão desadequadas da realidade”, porque “não podemos olhar para a situação social como uma realidade imutável”.
A presidente da Cáritas admite que esta semana é muito importante para a Cáritas. "Há Cáritas diocesanas e Cáritas paroquias que dependem do peditório que se faz esta semana em todo o país."
A Semana Caritas, este ano, coincide com um período eleitoral. A oportunidade é favorável para tornar mais pública a preocupação com o combate à pobreza, com as temáticas da exclusão, que parecem estar algo longe do atual debate político?
Eu acho que tem que ser. Aliás, a minha presença hoje também tem esse propósito. Porque, de facto, assistimos a muito, muito, muito discurso, com muito, muito pouca atenção às mãos vulneráveis, pelo menos à temática da pobreza. E as pessoas não podem esquecer-se. É impossível olharmos para a realidade portuguesa e não vermos, não ouvirmos aquilo que nos vem do território, que é uma situação muito complexa. Não há melhoras e nós precisamos de olhar sobre os caminhos. Nós temos de ser capazes de fazer alguma coisa.
A Caritas pode ajudar a colocar essa questão no centro, tendo em conta o seu conhecimento da realidade?
Nós temos como material para o lançamento da campanha o primeiro relatório sobre a pobreza, feito numa perspetiva um bocadinho diferente do que a mera avaliação dos dados estatísticos tradicionais. É um estudo que nos vem do Observatório Cáritas, coordenado pelo doutor Nuno Alves, membro da direção da Cáritas Portuguesa, e que se dedica exatamente a olhar para as questões da pobreza e a criar um instrumento que nós gostaríamos de tornar anual.
Esse estudo vai ser apresentado na Católica Porto, na terça-feira?
É, vai, vai, exatamente.
Há algo que nos possa adiantar, sem estar a quebrar um embargo?
Aquilo que posso dizer é que há uma perspetiva fixada nos indicadores de privação e exclusão severa, que nos traz mais próximo da realidade. Quando falamos em números e em estratégias, estamos a olhar as coisas de longe, num movimento que é muito importante, não quero desvalorizar isso, mas aquilo que vemos depois de olharmos para a realidade, quando estamos próximos, não é a igual.
Há um desfasamento entre os dados e aquilo que vai acontecendo e o agravamento da situação?
Eu costumo dizer que nós temos uma variação da nossa pobreza mais resistente, que há muitos, muitos, muitos anos, desde o século passado, que variam entre 16% e 22%, e o risco da pobreza é calculado com base numa mediana de um valor de rendimento. Quando o rendimento varia, imagine, sobe o salário mínimo nacional, varia a percentagem de pobres. Na realidade, não muda nada quando se decide alterar o valor do salário mínimo, porque aumenta o rendimento médio. Qualquer mudança nos dados do rendimento provoca uma alteração sobre a estatística, mas não sobre a situação das pessoas. A Cáritas tem este trunfo de estar muito, muito, muito, muito próximo, e aquilo que nós temos feito é um esforço enorme, com um esforço voluntário de muitos investigadores e colaboradores, para ver como é que conseguimos transformar esta visão que temos num dado útil para a ação e para o conhecimento do problema. E este é um primeiro passo.
A perceção que têm da realidade é de que o conjunto de situações continua a aumentar e continua a subir o número de casos de exclusão e de pobreza?
Nós temos um aumento de pessoas a chegar aos nossos serviços, com muitos tons diferentes, consoante o território, mas que eu acho que ainda assim está longe daquilo que é a realidade, porque nós também nos apercebemos de que vão-se somando situações críticas à situação social portuguesa e as pessoas que nós apoiamos são as mesmas. Surgem situações novas, mas as mesmas cuja situação de vida não mudou, acabam por desaparecer. As pessoas estão um bocadinho a desesperançar e não querem depender de um apoio mensal ou de limitação, não querem isso, e começam a afastar-se. O esforço é condicionado pela sua vontade de garantir que não ficam sem esperança.
Falámos durante muitos anos da pobreza envergonhada. O que me está a dizer é que vai começar a haver uma pobreza invisível, com as pessoas a desaparecem do radar?
A pobreza invisível já existe, já existe também onde também estão essas situações de pobreza envergonhada, mas aquilo que eu estava aqui a falar é, nessa pobreza envergonhada, das situações de crise que acabaram por fazer com que se aproximassem da Cáritas muitas pessoas que, apesar de terem lutado contra essa visibilidade da sua situação crítica, ousaram pedir apoio e acharam que iam conseguir com esse apoio.
Depois, perceberam que sem um apoio continuado isso não acontece e isso não está na sua maneira de estar na vida. E isso, a mim, confesso que me preocupa muito porque podemos desfazermo-nos em tentativas de campanhas, de chegar às pessoas, de lhes dar apoios pontuais, até de participar, sempre que podemos e somos chamados a isso, na discussão de medidas de política novas, de novos sonhos e novos tesouros para enfrentar esta situação, mas não conseguimos fazer nada se as pessoas desistirem.
Há um sentimento total de falta de esperança?
Não é total, nem eu acho que seja irresolúvel.
O que eu quero aqui chamar a atenção é que todos fomos convocados para dar mais atenção porque estas pessoas que desistem são pessoas a quem algum tempo nosso e alguma palavra nossa pode fazer diferença. Não podemos ficar sentados à espera que as pessoas venham ter connosco para nos falar da sua situação, problema. Nós temos que olhar como deve ser. Lembro-me agora aqui de uma frase: "não desvies de nenhum pobre o teu olhar". Acho que é fortíssimo e é um bocado isto: é tão fácil quando nós não olhamos... Não vemos, portanto, não acontece. Não é assim.
As coisas para as quais não olhamos e não vemos acontecem na mesma. Todos nós temos alguns recursos e eu não estou a falar só de recursos financeiros. Há muitos recursos que temos enquanto pessoas, recursos que têm que ser postos em cima da mesa para tentar amaciar a situação de crise que muitos portugueses estão a viver.
Quem trabalha nesta área do combate à pobreza fala, muitas vezes, da necessidade de avaliar as medidas. Os dados do Instituto Nacional de Estatística mostram que 10% da população empregada está em risco de pobreza. Estes dados mostram que as respostas sociais estão a falhar?
Nós temos vindo a falar nisso. Não são as medidas políticas que estão a falhar - estão é desadequadas à realidade. Não podemos olhar para a situação social como fosse uma realidade imutável. A realidade muda e as medidas políticas não podem não mudar: têm que se adaptar à realidade, juntando também as próprias pessoas em situação de crise à resolução destes problemas. Tem que haver envolvimento. A questão da participação na resolução dos problemas de cada um e a participação dos recursos, falados de uma forma holística, que todos nós temos, tem que contribuir para ajudar a resolver problemas. Às vezes, acontecem coisas mais estranhas. Acontecem situações em que o facto de uma pessoa conseguir vencer uma situação de rutura de pobreza, retira-a da possibilidade de outros apoios porque fica fora dos critérios. E estas coisas deviam-nos convocar com muita proximidade. E são críticas para todas as situações de problema e para todas as vulnerabilidades que nós temos.
Temos que olhar para as medidas políticas de uma forma ativa. Não pode ser só a nossa escuta que é ativa, o nosso olhar atento. As medidas políticas também têm que fazer esse esforço, porque não podemos confortar-nos. Temos esta medida, aquela medida. Até discutir, porque aquilo que é sério e certo em determinado momento pode perder a sua importância e a sua prioridade. Sabemos que não somos um país rico. Sabemos que temos dificuldade, mas temos a obrigação de dar consistência e efetividade às medidas políticas que são possíveis em cima da mesa.
No novo quadro político que se avizinha é de esperar uma atenção muito particular à situação dos trabalhadores pobres, uma vez que essa é uma realidade para a qual também não temos olhado muito e que tem crescido?
Tirando a questão da sua pergunta em relação ao quadro político. que eu não sei qual vai ser, a Caritas tem esta preocupação. Realmente, diria que as pessoas poderiam ter também esta consciência. Há sempre uns murros de estômago que são temporários. Eu lembro-me que, na outra situação de crise, o nosso murro no estômago foi o duplo desemprego dos casais. Eu diria que o murro no estômago, hoje, é que o emprego já não é garantia de fuga à pobreza. E isso, claro que do ponto de vista político é muito exigente e devia ser prioridade. O emprego é aquilo que nós podemos, de forma autónoma, fazer, investir para resolver esta situação, que é não cair na situação de pobreza. Então, do ponto de vista político, isso tem que ser visto com muita seriedade, porque o emprego digno e o salário justo são duas coisas que não podem estar fora do panorama da discussão de políticas e da política.
Nós não separamos as pessoas que têm emprego das pessoas que não têm emprego. Nós ajudamos a quem pede e precisa, quem está em situação de grande fragilidade ou tem alguma vulnerabilidade acrescida é nosso parceiro deste caminho.
Do ponto de vista da análise da situação, o nosso observatório vai, com certeza, continuar a acompanhar esta realidade. Estamos a tentar encontrar formas de tornar visível muitos dados que nós não temos vindo a saber pôr em cima da mesa, traznedo-os para a discussão. Passámos pela situação do SEGASP (Sistema de Gestão do Atendimento Social de Proximidade) e agora estamos a procurar uma forma de todo o caminho do SEGASP, que era um sistema de gestão de dados a ser colocado numa plataforma flexível, que seja fácil de utilizar por todas as pessoas com que nós temos relação e que são radares do território.
Vamos estar com essa preocupação, mas, para nós, em termos da ação de inserção, se pudermos fazer com que as pessoas não desistam de trabalhar, porque de facto isso não é solução de vida, para nós é muito importante. Porque há quem faça isso.
Nenhum de nós sabe qual será o próximo quadro político... O que lhe pergunto é se um cenário de instabilidade, em que possa demorar ainda mais tempo formar um novo governo, poderá agravar esta situação de crise social e económica?
Não tendo uma bola de cristal, eu acho que isso é evidente. Isto acontece a cada dia e, de facto, entre as situações nacionais e a questão dos estrangeiros em Portugal, para já não falar das realidades internacionais que também nos convocam - a Ucrânia e a Faixa de Gaza, mais o agravamento da situação em Pemba, em Cabo Delgado. Isto é o dia-a-dia. Eu adorava que pudéssemos investir na inclusão das pessoas e não estar permanente em emergência. Esta situação que nos obriga à situação social não é aquela que nós gostávamos de estar a investir.
O que nós queríamos é fazer diferença, que as próprias pessoas pudessem afastar-se de nós do ponto de vista da necessidade económica e social. Também não queremos deixar cair esse desiderato nem desistir de pensar nisso. Temos de encontrar soluções de inclusão para além das situações de emergência.
Nessa perspectiva, entende alguns discursos políticos que culpabilizam as pessoas em situação de exclusão e de pobreza?
Não há ninguém que queira estar nas situações em que está. Mas também não vou dizer que não reconheço que há alguns vícios que decorrem das medidas de política. Se é igual uma pessoa trabalhar ou receber apoios, há outras prioridades. Se é permitido que se faça um emprego não regulado... Mas a culpa não é das pessoas, a culpa é do sistema.
É muito bom sentar-se numa cadeira, num púlpito e fazer um discurso, uma conferência sobre os temas da dependência dos apoios. Nós vimos de um tempo em que os apoios pontuais, sem perspectiva de inserção, têm sido uma solução para as situações de crise, mesmo pelo Estado. Portanto, não podemos dizer, depois, que as pessoas são culpadas dessa situação. O sistema que têm é esse, se aquilo que oferecem implica afastamento de determinadas obrigações…
Falava ainda há pouco da questão dos migrantes. Portugal tem sido nos últimos tempos um país de acolhimento. As dificuldades que se vivem por parte destas populações também vieram causar mais pressão, do ponto de vista social. Estamos a saber responder à situação de grande vulnerabilidade que muitas destas pessoas vivem?
Eu costumo dizer que são estrangeiros, porque neste momento já não é visível, à primeira vista, se é um refugiado, se é um migrante.
Sim, essa distinção clássica agora é difícil...
No nosso programa “Inverter a curva da pobreza”, 43% dos apoios são dados a estrangeiros. Isto não pode acontecer.
Isto não é só, como era até alguns anos atrás, uma realidade de Lisboa ou dos grandes pólos. Está a acontecer ao nível das aldeias, com grandes situações críticas e com pedidos à Igreja, à Cáritas, de que acolham as pessoas que vêm. Isto está a acontecer hoje. Há 15 dias que há uma pressão enorme para resolver o problema de um grupo bastante alargado de refugiados.
Mas aí está a falhar o Estado…
Também o Estado está numa situação de alteração da sua organização, com o fim do SEF e com a reorganização do ACM para a AIMA e a redefinição, naturalmente, que vão ter de fazer do quadro de ação, mas esquecidos de que a reorganização não implica que as pessoas desaparecem. As pessoas estão cá, vêm, são aceites e engrossam o número de pessoas que dormem na rua. Nós não estamos a falar de uma situação que seja socialmente resolúvel com uma varinha de condão. Eu, infelizmente, não tenho nenhuma, mas nem sequer com criatividade, que é aquilo que nós temos usado para resolver os problemas das últimas crises. A pressão é enorme, ao nível de todo o território, em grupos grandes, com receios de insegurança nos núcleos mais pequenos, porque, quando não sabem falar a língua, é inseguro para todos, é inseguro para quem os ouve e não os percebe, e é inseguro para quem quer falar e não consegue.
Não tem havido tempo para fazer esse trabalho de inclusão…
Não. E, por isso, mais uma vez, esta nossa preocupação é grande. Seja para portugueses, naturalmente, para os nossos mais próximos, para aqueles que estão muito perto da nossa ação, e também para os estrangeiros que vão chegando, que têm de ter uma solução. Naturalmente o Estado tem um papel a que não se pode furtar.
Sabemos que, por conta das sucessivas crises e do aumento dos pedidos de ajuda, algumas instituições têm revelado dificuldades. Como está a saúde financeira da Cáritas?
Variável. Muito variável, mas muito difícil. Esta semana é muito importante para nós. Há Cáritas diocesanas e paroquiais que dependem daquilo que acontecer esta semana. O Peditório Nacional, que se faz de modo presencial e online, exige que nós todos participemos, de facto, seja qual for o valor.
Não nos podemos esquecer que somos 10 milhões de portugueses. Se cada português desse um euro, tínhamos 10 milhões de euros. E, às vezes, perdemos a noção de que aquilo que, eu sentir que posso dar pouco não deve ser motivo para eu deixar de apoiar. A soma de todos juntos é que faz a diferença, para a ação da Cáritas em Portugal e também dos apoios que damos a outras realidades internacionais, mas sobretudo para a realidade nacional. A Semana Nacional Cáritas, que começa hoje e termina no dia 3 de março é importantíssima. Aquilo que digo é que estejam atentos porque a Cáritas precisa de todos para a sua ação próxima e para a sua ação nacional.
Estamos a falar do site caritas.pt e também dos voluntários que, como habitualmente. estarão pelas ruas…
Em caritas.pt, têm todos os tesouros que nos podem oferecer. Os nossos anjos do terreno são os nossos voluntários. Curiosamente, achei que, a seguir à pandemia, as pessoas iriam desinteressar-se, mas, para muitos voluntários, a possibilidade de participar de forma tão ativa, junto da Cáritas e da Igreja, é uma coisa que eu não posso parar de agradecer. É comovente, pela forma como as pessoas apostam e se envolvem no peditório nacional.
Não receia que a situação de dificuldade dos portugueses se possa refletir negativamente no peditório público que agora começa?
Claro que eu tenho noção de que as pessoas não têm a mesma disponibilidade que tinham há alguns anos. Mas, infelizmente, nos últimos anos, tem havido sempre uma crise que nos convoca. Aquilo que eu acho importante é não perder de mira, apesar das crises - tivemos a guerra da Ucrânia, todas as situações que aconteceram - não desvalorizar o papel que se pode ter junto do peditório nacional da Cáritas. E eu acredito que, apesar de serem tempos difíceis, se estivermos mais conscientes e mais alertas, vamos conseguir fazer a diferença.
Falamos da guerra da Ucrânia, não falamos propriamente, mas estava subentendido, da pandemia, da crise, da inflação. A preocupação maior, agora, é mesmo a crise de esperança?
Para mim, é. Somando as outras coisas, naturalmente. Mas porque é aquilo que eu não tenho, não sei como se resolve. A não ser com a participação de todos, muito próxima.