Mais de três anos e meio depois de 52% dos britânicos terem votado a favor da saída da União Europeia, o Brexit vai finalmente acontecer, mas nem por isso o assunto está perto de estar resolvido.
Pelo meio o Reino Unido conheceu três primeiros-ministros. David Cameron, que convocou o referendo como parte de um compromisso para voltar a ser eleito, demitiu-se no dia seguinte dizendo que não era o “capitão certo para guiar o país até ao próximo destino”.
Seguiu-se Theresa May, que prometeu tornar o Brexit um sucesso e garantiu que “Brexit significa Brexit”. Mesmo hoje, ainda não sabemos o que o Brexit significa mesmo, para lá do óbvio. Também por isso, depois de várias derrotas históricas e dois adiamentos do Brexit, em maio de 2019 chegou a vez de ser Theresa May a demitir-se.
Boris Johnson entrou em cena e prometeu concretizar o Brexit até 31 de outubro, dizendo mesmo que “preferia morrer numa valeta” a adiar o Brexit uma vez mais. Só que os Conservadores perderam a maioria e o Brexit foi mesmo adiado até 31 de janeiro.
Nas segundas eleições desde o referendo, uma vitória com maioria absoluta para Boris Johnson e os Conservadores tornou o Brexit inevitável e afastou a ideia de um segundo referendo, defendida por todos os outros partidos e até por alguns conservadores, num movimento que chegou a levar perto de um milhão de pessoas às ruas de Londres.
Durante esse período o Parlamento foi a imagem de um país dividido, tão dividido como em 2016, o ano do referendo quando 52% dos votantes determinaram a saída da União Europeia.
A UE e os imigrantes foram o "bode expiatório"
Eunice Goes, professora de política na Universidade de Richmond em Londres, explica à Renascença como é que o Reino Unido, onde o euroceticismo esteve presente ainda antes de se juntar à Comunidade Económica Europeia chegou a este ponto: “é o resultado dos efeitos de desindustrialização dos anos 80 e 90, da intensificação da globalização, que levou a uma revolução muito grande a forma como vivem as populações no Nordeste de Inglaterra, nas ‘Midlands’, no País de Gales e na Escócia também, que viram as fábricas a fechar e não houve nenhum outro sector económico que aparecesse. São populações que se sentem muito abandonadas pela classe política.”
“Chegando a 2008, com a grande crise financeira, essa foi mais uma década perdida em termos de rendimentos. Os rendimentos da população baixaram brutalmente e ainda não recuperaram para o nível de 2008”, sublinha a especialista em política britânica..
Para Eunice Goes, estas são as causas que "levam a que os eleitores estejam tão descontentes e, de certa maneira, a União Europeia foi o bode expiatório. A União Europeia, e os imigrantes provenientes da União Europeia. Houve uma vaga muito grande de imigrantes europeus entre 2005 e 2012, primeiro os imigrantes da Europa de Leste e Central, e a seguir os da Europa do Sul.”
“Numa altura de cortes nos serviços públicos, com bibliotecas a fechar, com pouco dinheiro para as escolas e para o Serviço Nacional de Saúde, os imigrantes foram o alvo - essa foi a resposta fácil. Sair da União Europeia foi um pontapé que se envia aos políticos há espera de uma resposta, que até agora não chegou. “
O dia da saída chegou, mas há muito para resolver
31 de janeiro é um dia cheio de simbolismo. Muitos deixarão pela primeira vez de ser cidadãos da União Europeia e é a primeira vez que um país deixa a UE. Mas do ponto de vista prático, para já, pouco muda. O Reino Unido continua no mercado único, na união aduaneira e a pagar a sua parte do orçamento europeu.
As maiores mudanças chegarão a 1 de janeiro de 2021, isto porque o período de transição dura até ao final de 2020. Só que este período parece ser manifestamente curto: são 11 meses para negociar um novo acordo comercial, mas também para acertar questões de segurança, protocolos a regulação de novos de medicamentos ou mesmo a importante questão do acesso às águas britânicas para pescas europeias, que pode ser usada como moeda de troca nestas negociações.
Uma espécie de missão impossível, como frisou a Comissão Europeia, só que Boris Johnson garante que não quer mais adiamentos e o acordo de saída aprovado pelo Parlamento Britânico incluiu uma adenda que rejeita qualquer extensão do período de transição. O problema é que o Japão e o Canadá, por exemplo, demoraram cerca de 7 anos a negociar um acordo semelhante com a União Europeia e, em paralelo, o Reino Unido vai começar também negociações comerciais com os Estados Unidos e a China.
Por tudo isto, aquele que era o desfecho mais temido - um “hard” Brexit, a saída da União Europeia sem acordo - não está ainda totalmente afastado. Caso não seja possível concluir os as negociações a tempo, a possibilidade de acabar o período de transição sem acordo pode levar a uma recessão económica, ao caos nas fronteiras, à falta de produtos médicos e alimentares e à subida dos preços.
A tudo isto, juntam-se problemas internos. A Irlanda do Norte não está satisfeita com a proposta de uma fronteira alfandegária que a separe do restante Reino Unido e na Escócia, que votou pela permanência na União Europeia, a primeira Ministra Nicola Sturgeon não vai deixar morrer a ideia de um novo referendo pela independência do Reino Unido. Para já, no Parlamento Escocês a bandeira da União Europeia vai continuar a voar alto, um ato de rebeldia contra Londres.
“Business as usual”
Depois de anos de fervor mediático e de debate, a confirmação de uma data para a saída do Reino Unido da União Europeia levou a que o Brexit saísse do debate público e político no dia a dia. Por um lado, pelo cansaço e desilusão perante a demora do processo, por outro porque não há para já muita informação concreta sobre o que está do outro lado. Também por isso não são esperados grandes eventos para assinalar a data.
No dia a dia é “business as usual”. A vida continua, perante uma incerteza que terá de esperar 11 meses para ser esclarecida. Em Stockwell, no sul de Londres, a presença da comunidade portuguesa faz-se sentir. Basta olhar para os toldos cá fora. "Estrela", "Lisboa", "Grelha d’Ouro". Lá dentro, num desses cafés, alguns dos trabalhadores, confrontados com o interesse dos meios de comunicação portugueses, conversavam sobre o Brexit e o seu estatuto no Reino Unido para lá da saída da União Europeia.
As garantias dadas até agora parecem ser suficientes. Mas se para já nada muda, a incerteza sobre o que esperar para lá de 2020 deixa os donos de alguns negócios apreensivos. Michael Costa nasceu em Londres há 27 anos e gere o Restaurante "Estrela", aberto pelos pais. Para Michael, neste momento “tudo parece estar na mesma”, mas admite que a possibilidade se houver um mau acordo comercial no final do período de transição pode ser prejudicial, porque “pode ficar mais caro importar produtos, os preços vão subir e as pessoas vão ter de pagar mais”
Logo ao lado, no "Three Lions", António Gomes da Fonseca é um dos donos e chegou ao Reino unido em 1987, numa altura em que não havia ainda liberdade de movimento de pessoas e bens e que, por isso, ainda teve de ir pedindo vistos para poder viver e trabalhar no Reino Unido.
Nessa altura, diz “havia mais qualidade de vida e se ganhava mais dinheiro”, mas admite que o negócio melhorou com o mercado único. Para já não está mais preocupado, mas diz que, se não houver um acordo comercial no final deste ano, “as coisas podem ficar complicadas porque os preços vão ter de subir, para acompanhar a subida dos custos de importação”. Ainda assim, diz que se pode tratar de “uma oportunidade, mas é preciso esperar”.
No entretanto, nada muda nem para quem visita nem para quem vive no Reino Unido, como garantiu em entrevista à Renascença o embaixador português em Londres, Manuel Lobo Antunes: “quadro legal é conhecido, é estável e é claro, portanto desse ponto de vista nada se alterou”. Há pouco mais de um mês, por altura das eleições que determinaram o Brexit, falei com vários portugueses a residir no Reino Unido. Agora que o Brexit se torna irreversível voltei a entrar em contacto com alguns deles.
Abel Oliveira que vive em Londres desde 2012, tem “sentimentos mistos” e diz que, por ter dupla nacionalidade, até pode ter outras oportunidades. Mas acredita o Reino Unido vai “deixar de ser um país atrativo para os europeus em termos salariais” e que isso levará a uma diminuição do fluxo migratório.
Christina Branco, no Reino Unido desde 2018, diz que “sinceramente não penso muito nisso “ e que no período de transição “tudo vai ficar igual”. Ainda assim, acredita que o Brexit terá impacto na economia.
Pedro Silva vive em Londres e diz estar “um pouco ansioso e curioso para saber como todo o processo vai decorrer”, uma ansiedade criada pela incerteza que acredita ir acabar com a “degradação da situação e social”.
Em Cambridge, Miguel Torres diz ter “uma sensação de desânimo, mas também de preocupação”, apesar de saber que o dia 31 de janeiro “é apenas cumprir calendário”. Mas está preocupado porque “há pouco tempo para negociar a futura relação entre Reino Unido e UE e no fim do ano pode acontecer um “hard” Brexit que terá um impacto muito negativo na economia britânica”.
Pelas 23h00 de sexta-feira, 31 de janeiro, atravessa-se o ponto de não retorno. O Reino Unido deixa a União Europeia 47 anos depois de ter entrado na CEE. Os seus cidadãos deixarão de ser cidadãos da União Europeia. Uns estarão felizes porque defendem que o Reino Unido é de novo verdadeiramente independente, outros choram uma perda de identidade, mas também a perda da liberdade de movimentos.
Uma moeda comemorativa do Brexit vai entrar em circulação e anuncia “paz, prosperidade e amizade com todas as nações”, mas quase quatro anos depois do referendo continuamos sem saber o que significa mesmo o Brexit, e o que está para lá do divórcio.