O assistente nacional do Corpo Nacional de Escutas (CNE), padre Luís Marinho, encara o relatório da comissão independente para o estudo dos abusos sexuais na Igreja como "uma etapa de um caminho” e antevê que “o pior está para vir”.
Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, Luís Marinho sublinha que “a confiança" no trabalho que está a ser feito dependerá da “credibilidade da resposta institucional que a Igreja for capaz de dar” ao relatório.
Para o sacerdote, a divulgação de casos de abusos sexuais na Igreja "não é nenhum ataque nem nenhuma agressão" à Jornada Mundial da Juventude (JMJ). "Os jovens esperarão, seguramente, uma Igreja credível, que também sabe reconhecer as suas fragilidades. Eu acho que isto é o Evangelho a revelar-se e, portanto, não é nenhum ataque, não é nenhuma agressão, não é nenhum incómodo para a Jornada."
Entrevistado a propósito do simpósio "Lugares da Afetividade e da Sexualidade na Configuração da Identidade Pessoal", que decorre neste fim de semana em Coimbra, o assistente nacional do CNE revela que “todos os adultos do CNE têm obrigatoriamente que passar por um processo formativo que aborda explicitamente o tema dos abusos”.
Luís Marinho esclarece que o simpósio integra uma iniciativa mais vasta, o projeto “Entre Linhas. A Sexualidade Humana: entre a natureza, a cultura e a liberdade”, que surgiu porque terem sido identificadas "algo como zonas de sombra", nas quais "os nossos dirigentes, particularmente nesta área da afetividade e da sexualidade, sentiam, e sentem, uma grande dificuldade de abordar até ao fim”.
“Nós queremos dotar a associação de uma reflexão institucional que depois se reflita nas suas mais variadas propostas de formação dos seus educadores”, reforça.
O padre Luís Marino assegura que o CNE pretendeu desde o princípio “fazer deste projeto um trabalho eclesial em rede”, porque “é um projeto da Igreja”.
“Nós não estamos aqui para mudar a doutrina da Igreja, não estamos aqui para afrontar ou enfrentar quem quer que seja. Estamos aqui para um trabalho eclesial”, garante.
Começamos por tentar perceber os objetivos deste projeto ‘Entre Linhas", sobre sexualidade humana, que decorre desde 2020. Ainda há muita dificuldade na sociedade e entre os dirigentes do CNE em falar e refletir sobre a afetividade e a sexualidade?
Essa é a constatação que fazemos, que fomos fazendo ao longo dos anos de contacto com o CNE e os seus dirigentes, nos mais variados contextos. Identificámos como que umas “zonas de sombra”, nas quais os nossos dirigentes, particularmente nesta área da afetividade e da sexualidade, sentiam, sentem uma grande dificuldade de abordar até ao fim. Porque fazem a ideia de que há uns limites predefinidos e estabelecidos para sempre, que não se podem ultrapassar, de que não se pode falar.
É evidente que se fala, mas a voz baixa, como dizemos no nome do projeto, “entre as linhas”, nos subentendidos. E foi a essa realidade que quisemos dar uma resposta, não imediata, de um prontuário de questões a responder, mas de envolver a associação numa reflexão de fundo, que nos permitisse compreender melhor o que é a afetividade, a sexualidade e a importância que isso tem na configuração das identidades pessoais e das histórias de vida. E o que é a proposta cristã, afinal? O que é a proposta da Igreja, que luz é que ela pode projetar sobre esta dimensão, juntamente com as outras, tão importante para viver vidas felizes?
Até que ponto a polémica à volta dos abusos sexuais precipitou a discussão e a reflexão das questões da afetividade e da sexualidade?
Devo confessar que não tivemos essa dimensão tão presente na nossa reflexão, embora seja um bocadinho concomitante. Mas, na verdade, não se ligam muito diretamente. Quanto à dimensão dos abusos, estamos a falar de uma dimensão das patologias, dos crimes e dos pecados. Nós queremos falar dos fundamentos da proposta educativa do CNE, um movimento da Igreja católica.
A lógica da Igreja Católica tem sido a lógica de proteção de menores e de prevenção, que implica uma boa formação...
E implica termos adultos educadores capazes de acompanhar, até ao fim, as crianças e os jovens nas suas mais variadas questões, capazes de serem interlocutores credíveis.
E os dirigentes estão preparados para responder mesmo às perguntas mais delicadas, mais perturbadoras dos jovens e das crianças?
Não, precisamente porque experimentam este incómodo, o incómodo pessoal, porventura, até, de não termos trabalhado, trazido para a luz nas nossas biografias pessoais o incómodo de se reconhecerem numa associação católica que é capaz de enfrentar, até ao fim, as questões que vêm das vidas concretas.
Estamos perante um processo. Nesta altura, já há dirigentes e jovens adultos a não desviar o olhar e a não mudar de tema de conversa, quando são interpelados por essas crianças e por esses jovens sobre estas questões?
Progressivamente. Acho que sempre tivemos um ou outro com uma inteireza de espírito e de vida capaz de ouvir e acompanhar até ao fim. Nós queremos dotar a associação de uma reflexão institucional que, depois, se reflita nas suas mais variadas propostas de formação dos seus educadores e, igualmente, com algumas atividades concretas que podem desenvolver com os jovens.
É preciso esclarecer um ponto que é transversal: falar da intimidade requer sempre o cuidado humano de - desculpem a expressão que se usa na minha terra - “não entrar de chancas”. E é, portanto, esta dimensão, que até podíamos traduzir numa outra palavra, o pudor, que é diferente do tabu. O pudor é exatamente esta delicadeza de entrar na vida de outra pessoa e de partilhar dimensões mais íntimas da sua história.
Eu gosto muito daquela expressão do livro do Êxodo, quando Moisés, diante da sarça ardente, ouve esta voz que diz “descalça-te, porque o terreno que pisas é sagrado”. É assim que um educador se coloca na sua relação com aqueles a quem é chamado a acompanhar. Descalço, descalço porque o terreno que pisa é sagrado e, portanto, é indispensável a delicadeza e o cuidado de não dizer demasiado, de não perguntar de forma que humilhe, mas de ajudar a que estas questões venham para a relação educativa.
O tipo de trabalho sobre a afetividade e a sexualidade que está a ser desenvolvido pelo Corpo Nacional de Escutas devia ser seguido por outros setores da Igreja? Estou a pensar em formadores, em catequistas, etc...
Nós quisemos, desde o princípio, fazer deste projeto um trabalho eclesial em rede ou, se quisermos, numa expressão até teologicamente mais profunda, um trabalho sinodal. Associamo-nos com a Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, com o Secretariado Nacional da Educação Cristã, que abrange todas as áreas dos professores de Educação Moral e Religiosa Católica, da Catequese, da Escola Católica, e também com os nossos irmãos escuteiros espanhóis, a Associação Católica de Espanha, e o Comité da Europa Mediterrânica da Conferência Internacional do Escutismo Católico.
Porque é um projeto da Igreja, nós não estamos a dialogar com a Igreja. Nós somos católicos, somos uma associação católica que agregou outras realidades da vida eclesial para fazermos este caminho em conjunto. E, neste ponto, a lógica do Evangelho é aquela que é justa: o semeador que sai todos os dias, a lançar a semente à terra, generosamente, generosamente, e que cuida… mas também sabe que não depende tudo de si e, portanto, sabe esperar que os frutos apareçam. Muito, seguramente, não será o próprio que semeia a colher. Isto é um trabalho a longo prazo e um trabalho de fundo, na lógica do Evangelho, na lógica da vida eclesial.
Tenho uma pergunta relacionada com tensões e incompreensões que tenham surgido neste processo, face ao objetivo assumido de acolhimento de todos, em particular no que diz respeito às pessoas homossexuais. Houve um olhar sobre este projeto que, muitas vezes, trouxe algumas críticas. Como é que isso foi sendo vivido e superado?
É fácil constatar que vivemos num tempo onde este tema é fonte de polarizações importantes, na Igreja e na sociedade. E vemos as suas implicações, até mesmo do ponto de vista político. O que nós quisemos foi, essencialmente, prestar atenção à nossa missão de educadores. É numa perspetiva educativa que estamos a fazer este projeto. Nós não estamos aqui para mudar a doutrina da Igreja, não estamos aqui para afrontar ou enfrentar quem quer que seja. Estamos aqui para um trabalho eclesial.
São evidentes as incompreensões, fazem parte do processo, não são adversárias. Este tema suscita muitos medos, suscita muitos receios de que, ao falarmos dele, estejamos a pôr em causa a identidade católica da associação. Ora, nós estamos, pelo contrário, a cuidar da identidade católica da associação, porque a identidade católica não é uma pedra nem um objeto de museu. Mas é, como diz o Evangelho, sal e luz que entra na relação com as pessoas e as ideias - porque aqui se trata também de uma discussão teológica, intelectual, sociológica, psicológica. Quisemos convocar as diversas áreas do saber, para que o Evangelho fecunde e para que não fique nem uma pedra de museu nem uma pedra de arremesso.
Até que ponto é que pode haver um distanciamento que torne irrelevante o pensamento católico sobre estas matérias na vida à concreta das pessoas?
Isto é absolutamente real. Fizemos, no âmbito deste projeto, um encontro com um conjunto de jovens caminheiros do CNE, dos 18 aos 22 anos, e jovens dirigentes dos 24 até aos 34 anos, e a constatação mais importante que fizemos é que a fé cristã corre o risco de se tornar irrelevante, particularmente nesta dimensão da vida. Não é convocada para iluminar esta dimensão da vida e, aí sim, a identidade católica é posta em perigo, porque ela pode ser uma formalidade, um adorno exterior, mas que, na verdade, não dá sabor e beleza às vidas concretas das pessoas.
A experiência no trabalho com jovens e crianças colocou o Corpo Nacional de Escutas na vanguarda do combate e também da prevenção dos abusos. Pode falar-nos um pouco dessa experiência?
Sim. É igualmente a preocupação desta educação integral e ao mesmo tempo feita com segurança. Também este tem sido um processo onde acompanhámos a vida eclesial, a vida da sociedade e de falarmos explicitamente deste assunto. De capacitar os nossos dirigentes para saberem não só comportar-se, relacionar-se, mas igualmente identificar situações de perigo que acontecem não só no âmbito da vida do escutismo, mas no âmbito da vida das famílias e que, naturalmente, depois tem um reflexo no desenrolar das próprias atividades.
Montamos todo um sistema de formação. Todos os adultos do CNE têm obrigatoriamente que passar por um processo formativo que aborda explicitamente o tema dos abusos, juntamente com outros. É um processo, digamos assim, de tratamento organizado de todas as situações, do presente ou do passado, que precisam de serem trazidas para a luz porque há vidas destruídas, há vidas destruídas por estas situações de abuso que nós não podemos ignorar.
É evidente que os crimes prescrevem, têm todos esses enquadramentos jurídicos, mas o sofrimento não prescreve e esta capacitação dos nossos dirigentes e da associação, do ponto de vista institucional, para dar uma resposta credível e eclesialmente relevante. Quero dizer: que honre o Evangelho. Tem sido a nossa preocupação.
A exposição mediática do tema tem ajudado na denúncia de casos no contexto do escutismo?
É evidente que a exposição mediática contribui para as pessoas estarem mais alerta. Aliás, alerta é o nosso slogan. Por um lado, isso, e, por outro lado, para ganharem uma certa confiança de que vão ser escutados. De que, enfim, a sua questão, a sua história não será ignorada. Eu compreendo muito bem o quanto este silêncio pesa, fere e traz vivências traumáticas, profundas e duradouras nas vidas das pessoas.
Portanto, tudo o que possa ajudar a que alguém que foi abusado ou que vive, até no contexto atual, uma situação de abuso a ganhar a confiança de que há alguém que acredita em mim [é positivo]. Há alguém a quem eu posso contar e que não ficará indiferente. Portanto, a exposição mediática é um dos fatores que ajuda a que esta confiança se gere.
Enfim, toda a questão está agora em saber se somos capazes de dar a resposta credível e eficaz a esta confiança tão preciosa que é depositada em nós.
O padre Luís Marinho integra também o projeto Cuidar, que tem por objetivo apoiar organizações católicas que trabalham com crianças e jovens, no desenvolvimento de uma cultura de bom trato. Esta preocupação tem dado frutos? Tem havido interesse nesta matéria?
Tem sido muito interessante as formações que o próprio projeto foi propondo. Muitas delas foram "online", mas também foi muito em contexto pandemia e ajudou-nos a encontrar caminhos que até então quase que desconhecíamos. Isso foi muito positivo em diversos âmbitos, no âmbito de associações mais formais ou mais informais que procuraram informação em vários workshops de sensibilização. E também já houve uma formação aprofundada, com uma sistematização bastante forte a toda esta temática.
E cada vez vamos vendo mais solicitações de dioceses, paróquias, movimentos que encontram no projeto "Cuidar" um parceiro para se capacitarem, para responderem exatamente com esta exigência evangélica que hoje nos é colocada.
Há pouco, falou de confiança e estamos a poucos dias da apresentação do relatório da comissão independente para o estudo dos abusos sexuais na Igreja. Este documento que aí vem vai trazer mais confiança?
O documento, creio eu, intuo que trará uma amostra da realidade. A confiança virá da resposta que a Igreja soube dar e isso estamos para descobri. É importante compreender que o relatório não é uma magia, é uma etapa de um caminho. Eu costumo, às vezes, dizer em conversas informais: o pior está para vir. Quer dizer que o relatório e a credibilidade da resposta institucional que a Igreja for capaz lhe dar vão revelar se as pessoas têm, de facto, confiança no que estamos a fazer e no modo como levamos a sério esta questão.
Não é só uma questão de números...
Pois, os números serão a tal pequena amostra da realidade. Isto é uma questão de cada pessoa e de cada história. De alguém que já pôde partilhar o seu sofrimento ou de alguém que ainda está à espera da oportunidade de partilhar o seu sofrimento. A Igreja não comanda o tempo da palavra das vítimas. Elas falarão quando puderem e, seguramente, quando sentirem que esta confiança existe. Por isso, tenho a expectativa de que para a frente temos ainda um processo longo de mostrar por decisões, por gestos, por palavras que somos credíveis. E este ponto acho fundamental, até para o contexto que estamos a viver da Jornada Mundial da Juventude em Portugal.
Os jovens esperarão, seguramente, uma Igreja credível, que também sabe reconhecer as suas fragilidades. Eu acho que isto é o Evangelho a revelar-se e, portanto, não é nenhum ataque, não é nenhuma agressão, não é nenhum incómodo para a Jornada. Pelo contrário, é exatamente a Igreja que se apresenta a si mesma. Não toda-poderosa, não toda segura de si, mas portadora da força e da beleza do Evangelho, como dirá a São Paulo, em vasos de barro.
Uma nova abordagem, com mais transparência e sem receios de temas tabus na Igreja?
Isso é absolutamente necessário. Não gosto muito da expressão de temas tabus, como se fossem temas interdito. Há temas que são difíceis de trazer para a luz, aos quais acedemos progressivamente. E neste tópico, claramente, estamos a aceder a ele, a compreender a sua extensão e profundidade. Com a chave de leitura do Evangelho. Quero dizer: isto não é uma resposta, usando a expressão do Papa Francisco, mundana, de lavagem de imagem. É a resposta que torna o Evangelho credível, porque institucionalmente acolhido e organizado de uma forma onde, de facto, a prioridade dos pequeninos que são o centro do Evangelho se torna efetiva e real.