Dificilmente o ano de 2020 poderia ter começado pior para o mundo. O ataque a Qasim Soleimani no aeroporto de Bagdad levado a cabo pelos Estados Unidos anuncia um ano de grande tensão no mundo, em particular no Médio Oriente.
Ao matar o segundo homem mais poderoso do Irão num ataque com um drone, os EUA elevam a um nível inédito a tensão com Teerão, abrindo a porta para uma escalada de ataques terroristas e para o agravamento dos conflitos por procuração em que ambos os países já estão envolvidos.
A responsabilidade de Soleimani no apoio a Assad da Síria, ao Hezbollah no Líbano, as milícias xiitas no Iraque e no Iémen, na organização de ataques terroristas um pouco por todo o Médio Oriente fez dele o inimigo principal dos EUA e do Ocidente na região. E, por contraponto, um ídolo venerado em todo o mundo xiita, em particular no seu país. A sua morte terá, por isso, como consequência inevitável um crescendo de ações terroristas e uma intensificação de conflitos como os da Síria e do Iémen, bem como o agravamento da volátil situação no Iraque.
Até hoje a estratégia da administração Trump em relação a Teerão parecia clara. Esperar que as sanções impostas na sequência da denuncia do acordo nuclear de 2015 fizessem o regime retomar negociações e assinar outro acordo mais favorável a Washington. Após este ataque ao coração do regime iraniano, essa estratégia deixa de ter qualquer sentido. A possibilidade de Teerão se sentar de novo a mesa para negociar o que quer que seja com Trump morreu esta madrugada no aeroporto de Bagdad.
O Irão e um pais de 80 milhões de habitantes, bem armado, organizado, poderoso e muito orgulhoso do seu passado e das suas tradições milenares. Soleimani era talvez o segundo homem mais poderoso do pais. Mais poderoso do que o próprio presidente, ele respondia apenas ao líder espiritual Ali Khamenei. A sua aura como estratega militar e herói de guerra contribuíram para a sua idolatria no pais. Pensar que Teerão poderá vergar-se agora as pressões americanas e renegociar o acordo nuclear de 2015 ou aceitar recuar no seu apoio a grupos terroristas não passa de uma quimera.
Acresce que a forma como Soleimani foi morto dá ao Irão alguma legitimidade para se vitimizar na arena internacional. Assassina-lo com um drone quando ele desembarcava no aeroporto de Bagdad equivale a uma declaração de guerra a Teerão, que pode invocar o direito de legitima defesa. Aquilo que aconteceu no aeroporto de Bagdad configura um crime de guerra a luz do direito publico internacional porque pode ser considerado um assassinato extrajudicial. Isto é, um pais mata um dirigente de outro pais com o qual não esta em guerra. E mesmo que estivesse oficialmente em guerra com o Irão, a morte do general dificilmente seria justificável porque não se trata de um combatente, mas de um dirigente político.
As guerras também têm normas pelas quais se regulam e sanções aplicáveis a quem não as cumpre. Aquilo que sucedeu agora em Bagdad será certamente objeto de controvérsia entre especialistas de direito internacional e é provável que a questão comece a ser debatida já nos próximos dias no Conselho de Segurança das Nações Unidas. A Rússia, uma aliada de Teerão, não deixará certamente escapar a oportunidade de convocar uma reunião para discutir o tema e ver a ação dos EUA condenada verbalmente por muitos países, incluindo talvez por alguns que são aliados habituais de Washington.
O assassinato de Soleimani enterra, portanto, duas ilusões que Trump tem alimentado desde que chegou a Casa Branca: a) conseguir um novo acordo nuclear com o Irão, mais favorável aos EUA; b) diminuir progressivamente o envolvimento e a exposição americana no Médio Oriente.
O que aí vem, neste início do ano de 2020, não e mais diálogo nem ténues perspetivas de paz. O que aí vem são mais ataques terroristas, mais vítimas, e maior envolvimento de tropas americanas no Médio Oriente. Para quem disse que estava na hora de os EUA deixarem de ser o polícia do mundo e fazer regressar as tropas a casa, não e um início de ano auspicioso.