“Eu sou o leigo que vem dizer como está a temperatura da água lá fora”, começou por dizer o humorista Ricardo Araújo Pereira (RAP), convidado pela Polícia Judiciária para fazer uma abordagem social e humorística ao problema da corrupção, num dia em que decorreu a conferência “A contratação pública e os riscos de corrupção”, na sede da PJ, em Lisboa.
RAP recorreu ao sermão de Santo António aos peixes para espelhar o que a sociedade sente em matéria de corrupção.
“O padre António Vieira dizia o que posso agora dizer à brigada anti-corrupção. Vós sois o sal da terra, o efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm o ofício de sal qual será a causa dessa corrupção? Ou é porque o sal não salga (aí a responsabilidade seria vossa inspetores) ou a terra (que são os homens) não se deixa salgar. Ele então vai pregar aos peixes, mas o problema é que um escândalo recente em Portugal teve como protagonistas uns robalos, parece indicar que em portugal nem os peixes são de confiança (risos).”
Ricardo Araújo Pereira diz que, como cidadão, fica “satisfeito com o combate à corrupção” e, como humorista, fica “satisfeito que não seja um combate eficaz porque tenho muita matéria para trabalhar”.
“Quando se fala no combate à corrupção parece que estamos a falar de um combate como o wrestling é um combate, mas no fim ninguém de aleija”, sublinha.
Com recurso à ironia, Ricardo Araújo Pereira foi direto a um caso que chamou a atenção para este crime e que foi muito mediático.
“Um dos casos mais interessantes foi um caso que mostra, claramente, que Portugal é um país livre de corrupção, o caso de um senhor chamado Domingos Névoa que foi absolvido no Supremo. O tribunal deu como provado que Domingos Névoa tinha oferecido 200 mil euros para que um vereador lhe fizesse um favor. Foi absolvido porque o político não tinha os poderes necessários para satisfazer o pedido dele”, começou por explicar.
“Em Portugal os corruptos têm de se esforçar muito para ser corrupto, ter a intenção de corromper oferecendo 200 mil euros em troco de um favor não é suficiente, ofereceu o suborno ao destinatário errado! Para o tribunal quem tenta subornar a pessoa errada não é um corrupto, é um palerma!”, afirmou Ricardo Araújo Pereira, arrancando muitas gargalhadas da plateia de investigadores criminais.
Pegando noutro caso, continuou: “a sentença não esclarecia se esse raciocínio era válido para outros crimes, quem assassina não comete homicídio? Ou quem assalta um banco errado não é ladrão, mas um distraído? Normalmente, nesse caso, só é ladrão se não administrar o banco”, aludindo ao processo BES e Ricardo Salgado.
RAP concluiu que “em Portugal é preciso ser muito talentoso para corromper, não é corrupto quem quer, tem de fazer as coisas bem feitas e não fazer à balda porque senão o tribunal rejeita as pretensões do candidato e diz tenha paciência e tente outra vez, isto não é corrupção que se apresente e vá para casa pensar”.
Um dos momentos altos da intervenção aconteceu quando o humorista recuperou um escândalo no norte da Europa.
“Um escândalo de corrupção na Escandinávia, em março de 2017. O escândalo que dominava as primeiras páginas, o Estado dava um cartão de milhas para uso nos transportes públicos em trabalho, mas este bandido do deputado comprou um pacote de amendoins, uma refeição, uma garrafa de vinho, outra de água, além de oito bilhetes de comboio para uso pessoal e o valor do dano deste pirata foi de - apelo à calma de todos - mil euros!!!! Passados dois meses, tornou-se inevitável que fosse demitido, porque isto era uma nódoa na carreira de qualquer pessoa!”.
Transpondo o caso teceu a mesma história, mas em versão portuguesa. “Num país, que não vou dizer qual, a ‘estória’ seria, um deputado que teria feito uma lei de privatização dos comboios à medida de conhecidos e em troca tinha recebido uma quantia que permitia comprar três fábricas de amendoins”, provocando constante riso entre a audiência.
Por fim, apontou outra questão “sui generis” portuguesa relativa à limitação de mandatos autárquicos, a bem na saúde da democracia e para evitar a instalação de vícios e determinados poderes.
“Pode haver três mandatos por autarquia, tendo em conta que há 308 autarquias e podem ser feitos três mandatos em cada uma e o autarca fica limitado a 924 mandatos, por isso só pode permanecer 3696 anos no poder!”, ironizou Ricardo Araújo Pereira.
A duração das investigações e processos judiciais mereceram também uma avaliação do humorista. “Dentro de dois anos faço 50 anos e sinto que começo a aproximar-me da idade ideal para cometer um delito. A minha esperança de vida já é menor que o tempo que dura um processo judicial, quando a sentença transita eu tenho 75 anos e tendo em conta o meu estilo de vida já não estarei cá e nada acontece”, rematou.