Sou contra o aborto. A legalização do aborto a pedido é um projecto político e legal que eu quero destruir, e estou certo de que a roda da história, que gira sobre o eixo do Evangelho, acabará por mudar o status quo. Todavia, só Deus é absoluto. Mesmo nesta questão do aborto, há zonas cinzentas e dúbias que arredondam a perfeição euclidiana desta causa. Na cidade dos homens, a moral não é uma linha recta, é uma linha às ondas como no “Grito” de Edvard Munch. Posto isto, importa ser claro: o que se está a passar nos EUA (Alabama) não faz sentido.
Impedir um aborto nos casos de violação e incesto é impor um mal sobre outro mal. É como impedir a legítima defesa num caso de homicídio. Um homicídio é sempre um mal, mas uma pessoa tem o direito de matar em caso de legítima defesa. Uma pessoa que mata para se defender fica sempre com essa cicatriz na alma, porque matar é sempre um mal. No entanto, matar é nestes casos o mal menor. Para serem coerentes com a sua visão absoluta e "perfeita" da vida, os políticos do Alabama que dizem que uma mulher não pode abortar em caso de violação também têm de defender que uma pessoa não tem o direito a matar em caso de legítima defesa (sim, podem rir à vontade: este é o Alabama das armas e da pena de morte).
Este é, para mim, o ponto central: uma mulher que engravida durante uma violação fica no campo do mal menor. Aquela gravidez é a consequência de um mal absoluto. Ela tem o direito de legítima defesa através do aborto. De resto, é por isso que defendo que a velha lei do aborto em Portugal estava correcta: a violação e o incesto são os únicas chaves (i)morais que permitem aceder à câmara onde se mata um ser humano por nascer. As únicas.
Obrigar uma mulher a ter um filho que resulta de uma violação é uma lei errada por outra razão: os políticos do Alabama querem legislar e impor a santidade. O que quero dizer com isto? Começo a resposta por um filme maravilhoso que já abordei nesta coluna: “As Inocentes”. O filme conta a história de freiras polacas violadas e engravidadas por soldados russos. Elas trazem no ventre o ovo da serpente - literalmente. A história (baseada num caso real), como já perceberam, evolui do medo para a esperança. Com a ajuda da fé e de uma enfermeira, estas mulheres conseguem transformar o mal absoluto num acto de esperança. O filme acaba com uma cena luminosa: as freiras amando os seus bebés numa foto colectiva. É um filme notável sobre a misericórdia e a redenção, que é sempre possível, sempre. O verbo cristão não é começar, é recomeçar.
A série “Happy Valley” também é extraordinária precisamente por esta razão: a personagem principal, Catherine Cawood, é uma avó que faz tudo para amar e criar o neto, que é o resultado da violação que levou a sua filha ao suicídio. O resto da família queria abandonar o garoto; o avô, o marido de Catherine, sai de casa porque não suporta ver aquele rosto, o rosto do mal. Mas Catherine resiste, passa por uma depressão, resiste ao suicídio da filha, ao divórcio, ao afastamento do outro filho. Cria o neto contra tudo e todos, apesar das suas próprias dúvidas. Tal como as freiras, Cawood é uma personificação do amor, que, como se vê, não é um mero afecto.
O problema é que este exemplo de santidade não pode ser legislado. Uma mulher que ama um filho que resulta de uma violação é a própria personificação da bondade, é porventura a pessoa mais próxima do amor de Deus. Mas, como é óbvio, esta superação pessoal não está ao alcance de todos. Não pode ser obrigatória por lei. Os santos e santas não se fazem com leis.