A angústia do músico no momento da pandemia. "Fui eu que adiei o primeiro concerto"
14-04-2020 - 22:30
 • Tiago Palma , Sérgio Costa

David Fonseca garante que, para ele como para outros profissionais da música, cancelar dezenas de concertos, e talvez não voltar a tocar em 2020 ao vivo, representa “uma quebra significativa nos rendimentos”. Confinado e isolado, escreveu uma canção precisamente sobre estar em casa – mas não sobre estar só.

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Se é verdade que o impacto económico da pandemia de Covid-19 é transversal a todos os setores de atividade, é igualmente verdade que a Cultura em particular, um setor já por natureza precário, foi atingida de forma extrema, com concertos, festivais, espetáculos e eventos cancelados.

Em entrevista à Renascença, o músico David Fonseca fez contas a este impacto, lembrando que viu serem-lhe cancelados “15 a 20 concertos, com o contrato já firmado” desde o começo ano, pelo que a sua perspetiva de realizar meia centena de espetáculos em 2020 cai por terra. Contudo, a primeira decisão de os cancelar até foi do próprio músico.

“A realidade é que mal começámos a ouvir as primeiras notícias da Covid-19, e de tudo o que poderia vir a acontecer, lembro-me que o primeiro concerto que foi logo adiado foi por iniciativa minha. Telefonei à agência e disse que não via nenhuma condição de nós estarmos a fazer concertos, porque já havia alguns casos de infeção em Portugal e comecei a perceber que ajuntamentos eram complexos de se ter – eu e toda a gente da indústria, na realidade”, explica.

O que se seguiu, os cancelamentos, um por um, até não se ter mais o que cancelar, “foi uma questão de dias”. “A forma como tudo isto abalou a nossa indústria não levou necessariamente um mês ou dois; no espaço de uma semana, basicamente, desapareceu tudo o que tínhamos à frente”, lembra David Fonseca.

"Não faz nenhum sentido, se houver a hipótese de novo surto, estar a fazer concertos"


O músico admite que tem, e continuará a ter, “uma quebra significativa nos rendimentos”, uma vez que “é nos concertos que a maioria dos músicos ganha a sua vida”. Mas os músicos são apenas, alerta, “a parte mais visível de tudo isto”. E explica: “Para se fazer um concerto, isto envolve agências, promotores, os próprios músicos, os 'roadies', as pessoas que montam os palcos, as pessoas que fazem a iluminação, que fazem o som. É uma indústria muito maior do que aquilo que as pessoas pensam. Num espetáculo ao ar livre a minha equipa tem 16 pessoas”.

David Fonseca diz não esperar voltar aos palcos tão cedo. Não em 2020. “Nós sabemos que isto vai ser complexo. E sabemos que, por muita normalidade que volte à nossa vida, nunca vai ser normal o suficiente nos próximos meses, muitos meses. Não o suficiente para fazermos um concerto. Só quando não houver risco de contágio de uma maneira generalizada é que é possível juntar as pessoas num concerto, sejam 15 mil ou 800. Não faz nenhum sentido, se houver a hipótese de um novo surto, estar a juntar um grande número de pessoas. Não vejo isto resolver-se em dois ou três meses, muito pelo contrário: eu vejo o ano de 2020 totalmente nulo em termos de espetáculos”, adverte.

E perante tal impossibilidade de ter trabalho, exige-se do Governo uma resposta, que intervenha na Cultura. Ou respostas. É o que defende o músico.

“Tem havido imensas reuniões com o Governo e com o Ministério da Cultura. Um dos documentos que centenas e centenas de músicos assinaram, pedia duas coisas essenciais: uma foi passada no Parlamento, que foi a ideia de não cancelarem os espetáculos, que os adiassem – e caso os cancelassem, teriam as autarquias que pagar metade do seu valor; a segunda medida era basicamente uma ajuda ao setor muito mais especifica e muito mais avultada do que aquela que foi dita pelo Ministério da Cultura, do tal milhão de euros que estaria disponível. Porque é uma espécie de ajuda à produção. E vai ser impossível de produzir até que isto tudo esteja resolvido. Assim sendo, as famílias de 'roadies', de iluminadores, de técnicos de som, não têm qualquer forma de chegar perto desse apoio”, explica.





A ideia de isolamento não é a David Fonseca propriamente estranha. Foi isolado, não por obrigação mas por vontade própria, que fez todos ou quase todos os seus discos. Agora, isolado de novo, nasceu um canção nova: “You Fell Like Home”, que conta com a participação da mulher, a atriz Ana Sofia Martins.

“Houve um disco que eu fiz em casa dos meus avós, em Peniche, durante três meses, onde praticamente mal saía, estava lá dias a fio. Portanto, a ideia de estar em casa e realizar um trabalho artítisco e criativo, não é uma grande novidade. A maior novidade, e talvez seja a mais complexa, é que o que quer que criativamente eu faça aqui, não tem bem um mundo para depois correr fora daqui. O mundo lá fora são as pessoas todas em casa. A música precisa de vida, de pessoas. Quando eu faço uma canção, essa canção precisa que alguém conduza um carro a ouvi-la, precisa que alguém a ouça ao pé dos amigos, que entre numa discoteca e a ouça, que ela faça parte de um momento da sua vida”, lamenta.

O tema novo, esse, fala precisamente de estarmos em casa. Mas não sozinhos. Porque, para o músico, a casa é um lugar de todos e não de um só, isolado.

“No fundo, uma pessoa quando faz uma canção, ela tem que ter uma relação com alguma coisa que o autor vive. O que eu queria escrever na canção, de uma forma muito simples, era que a casa das pessoas, e o que é a casa, o que é conforto da casa, tem muito a ver com os outros, não tem que com as paredes nem com o que temos, não tem que ver com o número de séries que vamos vendo na Netflix. Não tem a ver com isso: tem a ver com a forma confortável com que estamos uns com os outros, como depositamos confiança uns nos outros para nos sentirmos mais próximos. É a chave para este momento. Isto vai passar e vamos reencontrar-nos todos, algures noutro ponto no tempo. Vamos ter o mundo de volta.”