“Em Portugal separa-se muito a política da economia, mas a distinção é impossível no mundo real”, diz José Pedro Teixeira Fernandes, professor universitário nas áreas das Relações Internacionais e Estudos Europeus na antecipação da visita a Portugal do Presidente chinês, Xi Jiping, na terça e quarta-feira.
“A EDP e REN têm por detrás empresas do Estado chinês. É um capitalismo que não joga pelas regras do mercado. No limite, são empresas que farão o que estado chinês entender”, alerta Teixeira Fernandes para os riscos de ter “separado sectores estratégicos do exercício político”.
“No mundo em que vivemos é impossível criar uma rede de relações económicas e comerciais muito próximas e desligar esse tecido de circunstâncias políticas adversas e de potenciais conflitos internacionais”, diz o investigador universitário para quem “até no futebol a China tem uma visão estratégica”.
Quando o Presidente chinês enfatiza que está com Portugal na defesa do multilateralismo não está a exagerar?
Mais que exagero há uma estratégia pensada e delineada. Desde a ascensão de Donald Trump que a China tem tentado, o mais possível, afirmar o seu compromisso com a via multilateral. A Cimeira de Davos de 2017 marca esse movimento de forma muito clara, com a China a querer passar a ideia de que continuaria a ter um compromisso inabalável com o multilateralismo e com a globalização tal como diz hoje para Portugal. Por um lado, procura aqui fazer um discurso a soar bem na Europa, em Portugal, no mundo ocidental em geral e, por outro lado, ao mesmo tempo, procura estrategicamente isolar o mais possível os Estados Unidos. Se se quiser ver a questão noutro prisma a China procura desligar os europeus dos norte-americanos. Mas vista com cuidado a estratégia chinesa não resiste a críticas.
Em primeiro lugar, o multilateralismo chinês é um multilateralismo perfeitamente estratégico. Só. Não há nenhuma propensão particular de Pequim para o multilateralismo a não ser no contexto actual onde a China depende da abertura dos mercados internacionais para a sua faceta comercial e económica. A China vê-se, atualmente, como a grande ganhadora da globalização. Os críticos também pensam o mesmo e daí as grandes tensões económicas e comerciais. E este sistema que está estruturado à volta da Organização Mundial do Comércio é o grande pilar de um país que, como grande exportador, precisa naturalmente de mercados abertos nos outros países ou então o sistema não funciona bem para a China.
É nesse quadro que se pode inserir a "Belt and Road Iniciative", a chamada "nova rota da seda" de que se diz ser 'só' o programa geopolítico mais relevante para as próximas décadas à escala global?
Esse 'só' pode conter algum exagero, mas seguramente trata-se de um programa com um impacto que vai muito além da economia. Um programa que tem uma dimensão geopolítica e estratégica incontornável. Até nos faz lembrar a reconstrução europeia no pós-segunda guerra e inevitavelmente o plano Marshall que foi chave na ligação dos Estados Unidos à Europa e na criação da relação transatlântica com todo o simbolismo associado a esse período. Não estamos numa época comparável de reconstrução pós-guerra, mas podemos comparar com todo o investimento que os chineses estão a fazer e com tudo o que representa no plano das ligações e vantagens para os países envolvidos, mas também dependências e interdependências.
Aqui a China tem uma estratégia notável, porque com a sua imensa liquidez vai construindo uma rede de investimentos e infraestruturas em países que, de outra forma, não teriam condição de fazer essas obras públicas. Isto é claro em África que tem cada vez mais uma presença chinesa incontornável. Ou toda a Ásia Central na 'nova rota da seda'. Aqui se cria uma influência que vai muito além do terreno económico e comercial. Este é o ponto: se os países passam a ter relações económicas importantes com a China é impossível que isso não pese nas questões internacionais mais importantes e mais políticas, questões militares ou diplomaticamente agudas.
Isto é visível nas questões dos direitos humanos. Com o investimento e a presença chinesa vemos vários Estados nas Nações Unidas - e a África conta com mais de 50 - esses Estados são potenciais aliados para contrabalançar condenações à China no plano dos direitos humanos.
O Ocidente está cada vez mais isolado nestas questões. Ao mesmo tempo em todos os temas mais sensíveis para a China, desde o mar da China, Taiwan, Tibete ou do Xinjiang poderemos ver a diferença. Vê a diferença se analisadas as críticas feitas internacionalmente no caso da Birmânia por causa da minoria rohingya e comparadas com o que quase não se tem dito sobre os problemas da população muçulmana no Xinjiang. É que de um lado está o Governo chinês com todo o seu poder de criar redes de relações económicas e comerciais que, no fundo, eliminam ou suavizam a crítica política. Do outro lado está a Birmânia, um estado sem qualquer relevância internacional muito mais fácil de criticar. Não quer dizer que as situações sejam exatamente iguais, mas percebe-se a diferença de tratamento e de atitude. Fica claro o sucesso da estratégia chinesa.
Em Portugal há abertura da classe política e empresarial à influência chinesa. Lisboa corre o risco de se tornar um apoiante “soft” com as desvantagens daí decorrentes no quadro dos nossos parceiros europeus e atlânticos?
Corre. Esse é um dos grandes problemas do intensificar da ligação chinesa a Portugal. Vamos por partes: é natural a atração pelo investimento estrangeiro e esse contexto surge em Portugal até num período particularmente crítico do país com a intervenção da troika. Estado e empresas estavam em dificuldades para cumprir compromissos. O que se percebe aqui é que os chineses estão particularmente atentos a estas situações. O intensificar da relação ocorre precisamente no período de crise. Isto leva-nos, por exemplo, à venda da REN e da EDP que, fundamentalmente, estão nas mãos do estado chinês. Aqui surge outro problema: estes processos não são normalmente de investidores privados chineses. É um aspeto que não pode ser ignorado e que dá alguma razão, por exemplo, a críticas que os Estados Unidos fazem à China.
No caso REN e EDP a realidade é que estão por detrás empresas do Estado chinês. É um capitalismo de estado que não joga pelas regras do mercado. No limite, são empresas que farão o que o estado chinês entender. Se imaginarmos que poderão surgir tensões com a China por várias razões - direitos humanos ou na região Ásia-Pacífico onde há mais sintonia entre europeus e americanos - nós começamos a ver aqui o início de um problema.
Em Portugal olha-se muito para estas relações separando a política da economia, mas a separação é impossível no mundo real. Não se pode separar sectores estratégicos do exercício político. Aqui o caso da rede elétrica é um bom exemplo. Há aqui uma potencial tensão que se as circunstâncias internacionais forem favoráveis nunca ocorrerá, mas se forem desfavoráveis pode mesmo ter lugar.
Um problema complexo para a diplomacia portuguesa?
Para o Estado português, porque o problema já está cá dentro. Só não surgirá se as circunstâncias internacionais forem favoráveis. Mas isso Portugal não controla. Essa é a grande questão e não depende do Estado português. Ao mesmo tempo a União Europeia tem um sistema de escrutínio de investimentos em sectores estratégicos que está a avançar. Nós precisamos perceber que esse investimento aparece quase sempre em sectores como redes elétricas ou infraestruturas portuárias. Não é só comércio.
Então como aceitar uma aproximação com aparentes propósitos geoestratégicos?
No mundo em que vivemos é impossível criar uma rede de relações económicas e comerciais muito acentuadas e desligar isso de circunstâncias políticas adversas e de potenciais conflitos internacionais.
O Estado chinês, seguramente, tem uma estratégia, tem uma estratégia global. Não se pode perder de vista o seguinte: numa economia de mercado o Estado não controla as decisões das empresas. São fundamentalmente decisões privadas. Não é o caso chinês. Tudo obedece a uma grande estratégia de Estado onde, no fundo, o poder político controla no essencial a direção da economia. Uma faculdade que pode ser usada quer numa situação pacífica proveitosa para ambas as partes quer para bloquear ou afastar países de zonas de influência negativa para a China.
O receio que temos aqui é que circunstâncias internacionais adversas coloquem Portugal, por exemplo, na impossibilidade de fazer qualquer crítica à questão dos direitos humanos na China porque tem depois uma rede de relações económicas e comerciais onde o Estado chinês dispõe de meios de pressão e condicionamento. isto está em marcha. Basta observar as tendências.
Se Portugal continuar a ver a relação com a China puramente como um negócio e um investimento perde a imagem do todo. Aqui temos de ter a imagem do todo. Temos de ter a imagem estratégica global e perceber que os chineses a têm.
No futebol há mais de 100 treinadores portugueses na China e Vítor Pereira foi campeão absoluto no Shangai SIPG. É também na cultura e desporto que podemos aprofundar relações de 500 anos ou até aqui há pensamento estratégico chinês?
Esse lado não deixa de ser interessante e curioso. O futebol é um exemplo não tanto pelo futebol em si mesmo, mas porque também mostra do lado chinês uma visão que confirma as outras análises.
Na China há uma aposta que se percebe em tentar a 15, 20, 30 anos e dar um grande salto passando também a ser uma potência futebolística. A China olha naturalmente para Portugal como um país que lhe pode fornecer o “know-how” necessário para o salto através de técnicos que possam melhorar muito a qualidade das suas equipas.
É uma oportunidade para o mundo do desporto português. Mas também mostra a tal visão consistente de apostar numa atividade de enorme visibilidade global. É mais uma peça da estratégia chinesa do que podemos chamar “soft power”. Até no futebol a China procura ter argumentos, mecanismos para aproximar os povos. A China tenta, o mais possível, diluir aquela ideia de ter ambições hegemónicas à maneira clássica do domínio das grandes potências.
Em si mesma esta opção para o futebol tem um lado positivo e também mostra uma visão estratégica chinesa, mesmo numa área de “soft power”.