Embora não seja dos temas mais badalados no sínodo da família, uma das questões que reúne os bispos em Roma por estes dias é a preparação dos noivos para o casamento. Em Portugal, as últimas estatísticas, de 2013, mostram que 70 em cada 100 casamentos acabaram em divórcio. A realidade está mais “complexa”, dizem os bispos, e exige-se atenção às etapas no caminho até ao altar.
Para reflectir sobre este tema, a Renascença convidou um casal e uma “metade” de um casal para uma conversa informal.
Mafalda (33 anos) e Nuno Frazão (35), responsáveis pelo Laboratório de Inovação Social do Instituto de Empreendedorismo Social (IES), são casados há cinco anos, têm três filhos e estão ligados à organização de retiros para casais.
O professor José Manuel Seruya (51 anos), da Universidade Católica, é casado há 31 anos, tem quatro filhos, e já conta mais de 15 anos a preparar noivos nos cursos de preparação para o matrimónio (CPM) na paróquia de Santa Maria de Belém, em Lisboa.
Existe desconhecimento acerca do ensinamento católico sobre a família?
José Manuel Seruya: Penso que sim. Nestes anos todos que levo a fazer os CPM, diria que a larga maioria dos pares de noivos que nos aparecem - é uma tendência que se tem acentuado nestes últimos anos - desconhecem genericamente aquilo que Cristo, e, de uma outra maneira, a Igreja, tem a propor-nos. Há desconhecimento inclusivamente no plano da própria cerimónia: muitos não se apercebem exactamente daquilo que ali se passa e o que é que significa aquele conjunto de passos que se seguem ao longo da missa.
Há coisas a mudar na proposta da Igreja? Na Igreja de hoje, temos muitos tipos de famílias, inclusivamente pessoas que já vivem juntas. O que é que tem de estar do lado de lá?
Mafalda Frazão: Há casais completamente diferentes e com preparações e catequeses muito diferentes. Mas tenho sentido muito aquilo que o Papa disse há duas semanas: que os padres têm uma preparação de oito anos para serem padres a vida inteira e os casais têm uma preparação de uma ou duas conversas com o padre e um CPM.
Sinto que as pessoas vão aos CPM porque é obrigatório e vão um bocadinho a medo, quando, na preparação para o casamento, têm imensas coisas, também obrigatórias, que têm que fazer: ir não sei quantas vezes à casa do casamento, preparar os pormenores todos para a festa acontecer. Na Igreja querem fazer os mínimos dos mínimos, e mesmo assim já um bocadinho contrariados. Mas também sinto que as pessoas que chegam a uma igreja e dizem que se querem casar, principalmente as que vão pouco, ficam sem saber o que é que hão-de fazer.
Há um primeiro “embate”, para algumas pessoas, quando chegam à paróquia, e recebem aquele inquérito sobre a vontade dos noivos. É um instrumento que a Igreja tem para tentar despistar estas questões. Isto chega ou não chega?
Nuno Frazão: Não queria tentar sistematizar tudo em “sim ou sopas”, mas tentar dar uma resposta sobre pessoas que estão ligadas e estão desligadas. O que é que isso quer dizer? Ligadas: estão ligadas a algum movimento [da Igreja]. Depois há os “desligados”, que não têm essa prática, mas que querem casar pela Igreja.
Chegam à Igreja e têm o inquérito com o padre, e podem, dependendo do padre e do papel e das formas, sentir-se confortáveis, porque as perguntas são normais, ou completamente desconfortáveis porque nunca pensaram no assunto ou porque o padre é sisudo e faz a pergunta de repente...estás ou não preparado?
E há a questão dos filhos, que se pergunta logo à cabeça. Para uma pessoa que já está noiva ainda não ter pensado em ter filhos é porque está qualquer coisa a falhar na mensagem?
José Manuel Seruya: Os CPM são uma realidade recentíssima da Igreja. A Igreja tem feito o seu caminho. Há cem anos não se falava destas coisas. As pessoas também se preparavam para o casamento. Havia muito menos divórcios e não havia CPM.
Para muitíssimos dos "desligados" é a primeira vez que têm uma experiência de acolhimento [pela Igreja]. Desde logo, não se sentem julgados. Nem pelo padre, que comparece no princípio e que celebra a missa de encerramento, nem pelo conjunto de casais, que são nove casais diferentes que estão com os noivos durante aquele fim-de-semana.
Estou a falar de pares que aparecem já com a criança, que vivem [juntas] há dois, três, cinco anos. É uma coisa que a nós nos toca: porque é que estas pessoas querem casar?
Eu não acredito, hoje em dia, que a maioria destas pessoas se queira casar porque socialmente os pais de uns e de outros acham que [o devem fazer] (…). O que é profundamente marcante é o encontro com pessoas concretas que se disponibilizam a dar um testemunho da sua vida. O ponto fundamental é que é uma experiência de Igreja muito concreta, muito tangível, é um encontro. E um encontro de onde nasce um apelo e uma proposta, mas feitas na base testemunhal.
Há os temas fracturantes habituais, que são dificílimos e delicadíssimos, como o planeamento familiar. Levanta sempre desconfortos a todos os níveis. É muito interessante ouvir casais com cinco, sete anos de casados, falar disso. Depois, há outros temas que também acabam por ser fracturantes. Quando se fala na confissão, no sacramento da penitência, o que é que isso significa no casal, no contexto da família. Mais um exemplo, corriqueiro: lidar com o dinheiro.
Mesmo curta, aquela experiência de um dia e meio, a diversidade de testemunhos pode ser tremendamente tocante. Porque um testemunho basta-se.
Isso é uma fase de “pesca”. Se o casal é tocado dessa forma, tem de ser acompanhado, tem de sentir que se houver obstáculos podem lá voltar. Como é que se navegam estas águas?
Mafalda Frazão: Nós, na verdade, acabámos por fazer o CPM mais tarde porque ficámos noivos e passados três meses e pouco casámos, mas já éramos acompanhados por um padre. O que nos foi preocupando foi, como é que nós conseguiríamos, no dia-a-dia da vida de casados que aí vinha, manter aquele tipo de intensidade que se vive naqueles meses antes de se casar, em que as conversas ganham outra dimensão, porque a pessoa sabe que se vai casar, e que a vida vai mudar.
Uma coisa que nos fez sentido foi, de “x” em “x” tempo, irmos renovando as promessas do casamento. Organizámos um fim-de-semana para renovar estas promessas, todo em cima do "eu, recebo-te a ti como minha mulher, ou marido, e prometo amar-te e respeitar-te", e durante este tempo vai-se pensando cada uma das palavras e frases, com momentos de oração diferentes. Quando fomos falar com alguns amigos, disseram-nos: "Se fizerem isso, nós também queremos fazer". E ao fim de sete ou oito meses de casados fizemos a primeira renovação. Foi assim um bocado em cima (risos).
Nuno Frazão: Agora achamos completamente ridículo (risos). Estes casam-se e passado seis meses querem renovar as promessas...a coisa está mesmo mal...Não foi isso. É um bocado desleal a preparação espiritual e vocacional entre um bom padre e um bom casal. Estamos em desvantagem. Tem de haver se calhar mais situações de retiro, de parar para pensar, à luz do que fazem outras vocações.
Existe também a questão dos casais que já vivem juntos, muitas vezes fiéis, ligados à vida da Igreja, tal como casais que se intitulam "católicos não-praticantes", ou simplesmente casais, fora da Igreja, que vivem juntos como num matrimónio. Há um desencanto. A Igreja não deve tentar captar esses casais para junto de si?
Nuno Frazão: Tenho aqui uma tese rápida: em 1960 havia 1% ou um casal em cada 100 que se divorciava; em 2005 tínhamos 46%, em 2011 batemos o recorde com 74%. Se houvesse abertura para missas só para casais divorciados, as missas não estariam completamente cheias? As coisas mudaram muito. As médias alteraram-se. Isto tem a ver com o nível de maturidade: filhos, dinheiro, trabalho, a relação, comunicação. Os jovens universitários acabam o curso aos 25 anos, não estão preparados para a vida real.
José Manuel Seruya: Eu tenho sempre enormes reservas quando me dizem que as pessoas estão desencantadas com a Igreja. Se estão desencantadas com a Igreja, então quer dizer que estão desencantadas comigo.
Nunca pensei se a Igreja devia ter uma proposta formal, institucional, organizativa, para acompanhar casais - ligados, desligados, praticantes, não-praticantes.
A maior parte das pessoas não pede ajuda para os seus problemas. Acabei de fazer mais uma peregrinação em casal a Fátima. Dois terços dos casais que lá estavam, e vou dizer com 14 aspas de cada lado, eram "irregulares", com os quais tenho uma amizade imensa. E foram porquê? Porque alguém lhes disse: “Não queres vir?”
E é tão comovente ver pessoas em segundos casamentos, ou em que um já foi casado, o outro é solteiro, mas que estão ali, às vezes com filhos. Donde é que isto nasce? Nasce de um gesto de amizade e de uma intuição. De uma possibilidade de confiar, sem garantia de resultado. E isto é absolutamente fascinante! E as estradas estão cheias de gente, e de casais assim, a ir até Fátima desta maneira. Muitas vezes, em silêncio.
Olhando para a geração actual. Falamos de pessoas com 18, 19 anos que namoram, têm relações que passam pelo sexo e uma série de etapas que a Igreja aconselha a que sejam tomadas de outra forma. Como é que se faz a ligação com esta geração?
Nuno Frazão: Não conheço nenhum padre nem freira da Igreja que não esteja preparado para os receber e falar com eles. Na questão das estruturas organizadas, há sempre espaço para muita melhoria. Se não existe, é urgente então desenvolver isso. Para que todas que fazem CPM, além do CPM, possam olhar para trás e dizer: "Olha, podíamos ter feito aqui um curso de namorados, ou podíamos ter feito uma peregrinação a Fátima...". E sem pudor, sem a ideia de "Ah, isto é para os beatos"!
José Manuel Seruya: A Igreja pode melhorar o 'dizer'. Mas não deve ser uma atitude paternalista. Quem está do outro lado também tem de exercitar alguma curiosidade por esta Igreja. Tem de aprender a ouvir. Nós temos talvez de aprender a dizer as coisas de uma maneira mais adequada, chamando as coisas pelos nomes. Pecado é pecado. Podemos dizer que são "faltas", depois podemos utilizar a semântica para explicar melhor. Mas a exigência é querer ouvir. Isso é um exercício também difícil, porque estamos muito assoberbados com o imediatismo das coisas, com três ou quatro ideias feitas e com preconceitos.
Virando a coisa ao contrário, a Igreja deve dizer que não? Deve dizer, por exemplo, "volte daqui a um ano", "vá fazer este retiro"?
Mafalda: Isso vai acontecendo. Claro que, com tão poucos encontros, as pessoas têm às vezes muito pouca matéria para conseguirem dizer uma coisa dessas. Acontece a muitos padres perceberem até naquele mínimo questionário que há algumas coisas que não estão a bater certo e que talvez aquele casamento não vá ser muito válido. Acho que há muitos casamentos que são, na verdade, nulos. Ao mesmo tempo, há os que se tornam casamentos mais tarde.
Casando-se pela Igreja (e há opção de casar sem ser pela Igreja), as pessoas têm de ter a noção que se estão a comprometer um com o outro, dentro da Igreja. Este compromisso com a Igreja é que, muitas vezes, vai-se perdendo ao longo da vida. O casamento vai para um lado, a Igreja vai para o outro. Mas é muito discutível se podemos dizer: “Olha, tu não podes casar”.
José Manuel Seruya: A Igreja quando diz "não" também o diz na óptica da correcção fraterna. Quantas vezes Jesus não diz isso? "Vai-te reconciliar primeiro com o teu irmão". A Igreja sabe que há um ritmo e uma respiração. Posso no meu íntimo não compreender e não aceitar, mas não vou criar uma ideologia nova para isto. “Não” é “não”, a Igreja tem de saber reafirmá-lo sem medo. A Igreja não é um partido político, não anda à procura de votos.
Agora, o "não" também tem de vir acompanhado, permitindo alguma luz e esperança. É um "não" em que não te largo a mão.
Nuno Frazão: Não tenho estatísticas sobre isso (risos). Não sei se isso acontece tanto assim, porque quando as pessoas não têm uma relação de proximidade com a Igreja, normalmente procuram um amigo que tenha e vão por aí. Um "não" da Igreja pode significar comunidade. Então, como é que a comunidade se envolve? Que haja uma entreajuda.