Vítimas agradecem o consolo do Papa. Violações, “pessoas cortadas como carne no talho” e outras obrigadas ao canibalismo
01-02-2023 - 15:52
 • Aura Miguel , enviada da Renascença a RDC

​“É preciso ter muita coragem para darem estes testemunhos”, comentou o Papa depois de ter ouvido terríveis relatos pessoais de um pequeno grupo de vítimas, alguns mutilados, da zona leste da RDC.

No final de cada testemunho e como sinal de perdão, foram colocados aos pés de uma Cruz, simbolicamente, objetos de triste memória relacionados com os crimes sofridos, como catanas, machados, lanças, etc.

O encontro decorreu na Nunciatura Apostólica, seguindo-se o discurso do Papa.


Ladislas Kambale Kombi, 17 anos

Nasci em Eringeti em 15 de julho de 2006. Sou um agricultor e o segundo da minha família. O meu irmão mais velho foi morto em circunstâncias ainda hoje desconhecidas.

O meu pai foi morto na minha presença, em Ingwe, em direção a Kikungu, território de Beni, por homens com calças de treino e camisas do exército. Do meu esconderijo, vi como eles o cortaram aos pedaços, depois a sua cabeça decepada foi colocada num cesto. Por fim, levaram a minha mãe. Raptaram-na. Ficámos órfãos, eu e minhas duas irmãzinhas. Até hoje, a minha mãe nunca mais voltou. Não sabemos o que lhe fizeram.

É horrível ver uma cena deste tipo. Isto nunca me deixa. À noite não consigo dormir. É difícil entender tamanha maldade, tanta brutalidade quase animal.

Santíssimo Padre, agradecemos-lhe ter vindo consolar-nos. Na sequência do acompanhamento espiritual e psicossocial da nossa Igreja local, eu e as outras crianças que aqui estão, perdoámos aos nossos torturadores. É por isso que deponho, diante da Cruz de Cristo vencedor, uma catana igual à que matou o meu pai.

Léonie Matumaini, da escola primária de Mbau

Coloco diante da Cruz de Cristo vencedor uma catana semelhante à que matou todos os membros da minha família, na minha presença e que me foi dada pelos carrascos, pedindo-me para a entregar aos soldados das Forças Armadas da República Democrática do Congo.

Kambale Kakombi Fiston, 13 anos, da escola primária de Chamboko

Perdoo aos algozes que me raptaram durante nove meses. Peço a Cristo vitorioso na cruz que toque o coração dos carrascos para que libertem as outras crianças que ainda estão no mato.

Santo Padre, peço-lhe que reze para que estas crianças se juntem a nós na escola e na comunidade.

Bijoux Mukumbi Kamala, Goma

Eles levaram-nos para a floresta. Cada um dos rebeldes escolheu quem ele queria. O comandante quis-me a mim e violou-me como um animal. Foi um sofrimento atroz. Permaneci praticamente como sua mulher. Ele violou-me várias vezes ao dia, sempre que queria, a várias horas. E isso durou 19 meses.

Era inútil gritar, porque ninguém podia ouvir-me ou vir em meu socorro. Tive a sorte de escapar com uma amiga, após 19 meses de sofrimento. Desta experiência, regressei grávida. Tive duas meninas gémeas, que nunca conhecerão o pai. As outras amigas que foram raptadas comigo naquele dia nunca mais voltaram. Não sei se estão mortas ou se ainda estão vivas.

Santidade, em tudo isto a Igreja continua a ser o único refúgio que cura as nossas feridas e consola os nossos corações através dos seus múltiplos serviços de apoio e conforto: as paróquias e os serviços da Caritas diocesana continuam a ser os nossos lugares de recurso e ajuda.

A vossa presença, Santidade, dá-nos a certeza de que toda a Igreja cuida de nós. Muito obrigado por ter vindo.

Aqui está a esteira, um símbolo da minha miséria como mulher violada. Coloco-a sob a cruz de Cristo, para que Cristo me perdoe pelas condenações que fiz no meu coração contra estes homens. Que a cruz de Cristo me perdoe a mim e aos meus violadores e os leve a desistir de infligir sofrimento desnecessário às pessoas. Esta é também uma lança igual à que usaram para perfurar os seios de muitas das nossas irmãs. Que Deus nos perdoe a todos e nos ensine a respeitar a vida humana. “

Désiré Dhetsina, vítima de Bunia

Eu vi a selvajaria. Pessoas cortadas como carne no talho, mulheres desventradas, homens decapitados.

Vivemos em campos de deslocados sem esperança de voltar para casa, porque as mortes, as destruições, os saques, as violações, o movimento das populações, os raptos, os abusos, enfim, parece que a execução de um plano de extermínio, de aniquilação física, moral e espiritual, continua todos os dias.

Santo Padre, precisamos da Paz e nada mais que a Paz, este dom gratuito de Jesus Cristo Ressuscitado. Queremos voltar para as nossas aldeias, cultivar os nossos campos, reconstruir as nossas casas, educar os nossos filhos, conviver com os nossos vizinhos de sempre, longe do barulho das armas! Queremos que o mal perpetrado em Ituri termine, seja punido e reparado! Queremos viver com dignidade, como filhos e filhas de Deus. Por isso, colocamos estas catanas e martelos sob a cruz de Cristo, para que Ele nos perdoe pelo sangue derramado injustamente. Que Cristo nos dê momentos de paz e tranquilidade onde todos tenham bons sentimentos, uns pelos outros.

Emelda M'karhungulu di Bugobe, de Cirunga, paróquia de Kabare

Fui mantida como escrava sexual e abusada durante três meses. Todos os dias, cinco a dez homens abusavam de cada uma de nós. Fizeram-nos comer farinha de milho com a carne dos mortos. Às vezes eles misturavam cabeças de pessoas com carne de animais. Este costumava ser o nosso alimento diário. Aquelas que se recusaram a comê-lo foram cortadas em pedaços e outras foram forçadas a comê-lo. Vivíamos nuas para não fugir. Eu fui uma das que obedeciam, até ao dia em que consegui escapar quando nos mandaram buscar água ao rio.

A nossa província é um lugar de sofrimento e lágrimas. O que posso dizer, Santo Padre, das vítimas do desastre de Mulongwe que perderam tudo devido à erosão selvagem: a casa e todos os objetos que ela continha. Muitos morreram. O desastre das inundações nos rios Mulongwe e Kavimvira, na diocese de Uvira, de 17 a 20 de abril de 2020, fez com que 60 pessoas ficassem enterradas sob a lama da inundação, 45 pessoas feridas, 3.500 casas destruídas, 7.700 famílias desabrigadas. Os sobreviventes vivem em campos de desalojados onde dividem uma tenda com 3 ou 4 famílias, ou seja, várias dezenas de pessoas, na mesma tenda. Está tudo super-lotado. É uma verdadeira sede de imoralidade. A prostituição está a aumentar nestes ambientes de vida, onde nem têm as mínimas condições humanas.

Devido às guerras inter-étnicas nas terras altas, mais de 346.000 pessoas foram deslocadas dos territórios de Fizi, Mwenga/Itombwe e Uvira desde 2019, incluindo 100.000 no território de Uvira e 246.000 no território de Fizi. Muitos abandonaram tudo. Todo o planalto foi abandonado a homens armados. Muitos morreram, outros fugiram, sem saber onde encontrar os seus entes queridos.

Santo Padre, é com imensa alegria que nós, vítimas de atrocidades e outras calamidades, tomamos a palavra para lhe apresentar a nossa sincera gratidão e o nosso agradecimento por ter vindo até nós, apesar dos seus imensos deveres. Está a deixar-nos um legado, um presente de amor através desta sua proximidade.

Colocamos sob a cruz de Cristo estas fardas dos homens armados que ainda nos assustam, por nos terem infligido inúmeras atrocidades e indescritíveis actos de violência, que ainda hoje continuam. Queremos um futuro diferente. Queremos deixar este passado sombrio para trás e poder construir um belo futuro. Pedimos justiça e paz. Perdoamos aos nossos carrascos por tudo o que fizeram e pedimos ao Senhor a graça de uma convivência pacífica, humana e fraterna. Obrigada, santo Padre, por ter vindo.