Conheci o senhor Soares dos Santos na sequência de um convite para uma entrevista de rádio, já lá vão muitos anos. Aceitou o desafio e telefonou-me logo a seguir, pessoalmente, para marcar um encontro na sede da RR, no Chiado. Veio a pé, recordando os tempos em que o avô tinha loja aberta nesta zona de Lisboa.
Falou-me da família, dos seus trabalhos e gostos e da vida austera que levou boa parte da vida, da sua visão personalista da gestão, das suas preocupações com a qualificação e motivação dos seus colaboradores o futuro do país e do mundo.
Fez questão de acentuar que não permitiria, durante a conversa, ser tratado por doutor porque o não era, e isso para ele “era importante” porque implicava o respeito pela verdade. “Senhor apenas”. Apenas não, que para quem conhece a abundância dos doutores e a escassez de senhores, senhor é muito. Muito mais.
Desde esse dia tudo o que escutei, li e vi desse senhor foi digno de um homem sério, e contido, simples e trabalhador, avisado e prudente, informado e culto, livre e frontal, preocupado com o presente e futuro de Portugal da Europa e do Mundo.
Foi sempre um enorme gosto ir-me cruzando depois, com ele, aqui e ali, em inúmeras ocasiões profissionais. Haverá hoje, sem dúvida, poucas personalidades nacionais que tanto admire. O facto de ser rico, nele, nunca me pareceu traço identitário.
Gostei particularmente de um dia ser chamada para uma conferência de imprensa onde anunciou que pretendia “devolver” à sociedade parte da riqueza que essa mesma sociedade lhe tinha permitido acumular. Decisão rara neste país. Tirei-lhe o meu chapéu.
Mais tarde partilhei com ele a alegria da criação da Pordata (a melhor base de tratamento de dados do país e um presente sem preço para qualquer jornalista económico). Continuo infinitamente grata por esse inestimável instrumento de trabalho diário, porque só é verdadeiramente livre uma opinião fundamentada e é a fundamentar opiniões que a Fundação Francisco Manuel dos Santos tem feito, dentro do maior pluralismo, o seu caminho. A fundação é das melhores coisas que aconteceu a Portugal nos últimos anos, desde os tempos do senhor Gulbenkian!
Muito trabalho, enorme profissionalismo (tão raro por cá), grande simplicidade. Foi por isso que vi esta semana com agrado que a minha velha escola, a Universidade Católica, e o Instituto de Estudos Políticos decidiu distingui-lo, este ano, com o seu prémio “Fé e Liberdade”.
Pensei interiormente que ainda bem. Porque sempre me parecera um homem livre (no pensamento e na acção), sem salamaleques, aos vários senhores dos vários poderes. Em minha opinião decididamente merece-o.
Não tenho por costume avaliar a catolicidade das figuras públicas e não raro, embora eu própria seja chamada a dar público testemunho da minha própria fé, critico livremente e discordo de actos e palavras de muitos dos meus “irmãos em Cristo”. É a vida. Contudo, nunca Soares dos Santos desencadeou em mim a tentação de me apetecer correr ao seu encontro para lhe pedir baixinho e discretamente ao ouvido que se mostrasse, por favor, “um bocadinho menos católico”, pelo contrário.
A Doutrina Social da Igreja é um tesouro comum que a todos compete aplicar. Pode e deve ser compatível com leituras diferentes face à luz da consciência própria. Eu assumo que tenho da mesma uma leitura radical e quase fundamentalista.
Ainda não sei como pôr em prática tudo o que Francisco nos pede na sua última exortação. Sinto-me permanentemente em défice e nessa leitura radical muito mais próxima de Louçã (que não creio que seja crente) do que de Ulrich (que sei que o é) pelo menos a avaliar pela sua intervenção na Pastoral da Cultura em Fátima.
Não acho que seja por vir da América Latina ou da periferia de Buenos Aires que o Papa nos diz o que nos diz, lembrando que devemos ver em cada pobre o próprio rosto de Jesus. E nos convoca para um testemunho de sobriedade radical e pobreza evangélica.
O meu pai, que boa parte da vida militou na Acção Católica, já me dizia o mesmo. Foi nele que bebi a fé. “Podia ser Nossa Senhora…”, disse-me um dia para justificar o convite para vir tomar banho a nossa casa uma velhinha sem abrigo. Perseguem-me ainda hoje as suas palavras e o seu gesto. Pois podia… mas eu ainda não fui capaz de o repetir, por uma única vez que fosse.
Gosto de pagar impostos. Podem até mesmo ser, muitos impostos. Acho-os um elemento útil para a redistribuição solidária dos rendimentos numa sociedade dominada por uma economia de mercado e pouco regulada para o meu gosto. Mas acho sobretudo farisaica a tentativa de normalizar as consciências impondo da fé uma leitura unívoca e uma prática de gestão económica e política uniforme.
Tenho da leitura da exortação apostólica do Papa Francisco uma visão muito diferente da de muitos outros economistas crentes, mas não me arrogo o direito de lhes impor a minha.
Não sei o que faria se fosse tão rica quanto Soares dos Santos. Não sei onde colocaria a sede fiscal da minha empresa, mas tomo por boas as suas explicações. No seu testemunho público vi muitas, inúmeras, vezes um bom e inspirador exemplo de Fé e de Liberdade. Não será isento de pecado mas está longe de poder ser visto como um pecador impenitente.
Não trabalho no Pingo Doce, de que sou apenas uma cliente, mas acredito que ali mesmo o trabalhador menos qualificado é visto como pessoa e não como um número. Ora isso, mesmo que não seja tudo, faz toda a diferença.
Tenho pena que tantos outros católicos de que sou amiga, velhos companheiros, ou economistas pelos quais tenho consideração e estima estejam a promover um verdadeiro manifesto anti-Soares dos Santos (em PDF), sem sequer se terem dado conta que Cristo só autoriza a “lançar a primeira pedra”, mesmo contra os pecadores públicos, àqueles que se considerassem totalmente isentos de pecado. Eu, seguramente, não estou.
[Texto originalmente publicado a 13 de junho de 2014, a propósito da entrega do prémio Fé e Liberdade]