A crise ucraniana provocou quase oito milhões de refugiados em países da União Europeia a juntar a sete milhões de deslocados internos e um número oficial russo de três milhões de pessoas que saíram do Leste da Ucrânia para a Federação Russa. Depois de uma viagem a Kiev para encontros ao mais alto nível, António Vitorino confessa-se pessimista com o rumo da guerra e com o impacto do inverno na Ucrânia e países limítrofes.
O melhor para os migrantes seria certamente a paz. Pela sua experiência e no exercício atual do seu cargo, encontra nos diversos atores políticos vontades verdadeiras de diálogo para encontrar a paz com a outra parte?
Há alguns sinais encorajadores do ponto de vista da segurança e da paz no mundo, apesar de não constituírem uma solução. Por exemplo, há uma trégua que tem durado no Iémen entre as partes beligerantes. Na Etiópia, houve um período de trégua, mas agora reacenderam-se os conflitos. Mais recentemente na Ucrânia, devo dizer que não vejo grandes perspetivas de haver paz. Pelo contrário, estamos a assistir mesmo a uma escalada que resulta da retórica política, com referência a uma utilização de armas nucleares. Uma afirmação tão explícita da possibilidade de utilização dessas armas não tem precedente histórico.
E leva essa afirmação a sério?
Temos que levar tudo a sério. Não podemos ser ingénuos e não estarmos preparados. Tenho cerca de 560 pessoas da OIM no território ucraniano e chegaremos às 700 no final deste ano. Tenho que prever todos os cenários, incluindo esse cenário terrível e assustador. Estes referendos fictícios que foram organizados para criar uma ilusão de anexação do território ucraniano por parte da Federação Russa representa obviamente uma escalada no conflito que, como disse o Secretário-geral das Nações Unidas, não nos permite sermos otimistas sobre a possibilidade de haver uma negociação e um acordo de paz.
O Governo ucraniano tinha a expectativa também simbólico de alguma normalização de fluxos a tempo do início do ano letivo. Em que ponto está movimento de ucranianos de retorno ao país que ocorreu ao longo do verão?
Esse movimento está em curso e é complexo de analisar. Discuti exatamente essa questão no meu encontro com o Presidente Zelensky. O interesse da Ucrânia é do regresso dessas pessoas para contribuírem na enorme tarefa de reconstrução do país. Observamos um movimento significativo interno de pessoas deslocadas da guerra e que estão a voltar paulatinamente aos seus locais de origem. Estes estão completamente destruídos, arrasados durante o conflito, designadamente na Grande Kiev e no norte do país, que estiveram sob ocupação de forças russas que retiraram. Quando as pessoas regressam ao seu local de origem, continuam a viver em condições extremamente precárias, como se estivessem deslocadas dentro do seu próprio país. A nossa principal preocupação é o próximo inverno porque as condições de vida são muito difíceis. Cerca de 10% de pessoas que saíram do país a seguir ao eclodir do conflito regressaram já à Ucrânia. Há ainda um movimento pendular de mulheres - recorde-se que são a maioria esmagadora das pessoas que saíram - e que agora regressam à Ucrânia por um determinado período de tempo, de três a cinco dias. Vão ver os maridos, as casas, os mais idosos que não saíram do país, mas depois voltam a sair da Ucrânia para o país da União Europeia onde deixaram os filhos à guarda de familiares e amigos.
Isso complica as estatísticas de migração. Esse movimento pendular é permanente e constante. É muito difícil de calcular a sua dimensão, porque os registos fronteiriços não são coordenados.
Um estudo recente da OIM mostra que metade dos seis a sete milhões de deslocados internos na Ucrânia não tem qualquer tipo de fonte de rendimento. Isso significa que vem aí uma operação de ajuda em maior escala para o inverno?
Já está a acontecer. Estamos a preparar o inverno desde o Verão, porque na Ucrânia é um período particularmente difícil e rigoroso. Temos brigadas móveis que fazem pequenas reparações nas casas que não estão seriamente danificadas e onde as pessoas podem proteger-se do frio. Mas o grande instrumento que temos - não apenas a Organização Internacional das Migrações, mas também o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados e o Programa Alimentar Mundial - é um programa bastante extenso de ajuda financeira. Cerca de 78% dos deslocados dizem-nos que a sua maior necessidade é dinheiro. A forma mais eficaz de apoiar as pessoas e de lhes dar também autoconfiança e esperança no futuro é dar-lhes esse apoio financeiro, em cooperação com o Governo ucraniano e com as autoridades locais, para que as pessoas comprem aquilo que é essencial como roupa quente. As pessoas não encontram o que deixaram para trás.
Mas houve muita roupa quente direcionada para a Ucrânia logo após o início do conflito. E essa roupa continua a ser necessária.
Estive em Kiev há duas semanas e toda a gente me dizia nas ruas que a temperatura tinha descido mais cedo face ao histórico. Isso significa que vamos ter provavelmente um inverno bastante rigoroso e prolongado.
Há um tema sensível que diz respeito às pessoas transferidas de zonas ocupadas para a Rússia. Qual é a abordagem da OIM em relação a essa realidade?
Abordámos também essa questão com o Presidente Zelensky. Juntamente com o Alto-Comissário da ONU para os Refugiados, disponibilizámo-nos desde o início para prestar assistência humanitária às pessoas deslocadas em relação à Federação Russa. Somos uma agência humanitária independente, neutral e isenta. Apoiamos quem precisa, independentemente da nacionalidade, credo religioso ou território de origem. A Federação Russa não aceitou essa nossa oferta, tal como fez face a uma oferta semelhante do Comité Internacional da Cruz Vermelha. Por isso, não temos acesso às pessoas que saíram de Donbass em direção à Federação Russa. Sabemos apenas os números que são divulgados pelo Ministério russo da Defesa, que aponta para três milhões de pessoas. A OIM continua presente em Lugansk e Donetsk com uma atividade bastante residual. Sabemos por conhecimento direto da degradação das condições humanitárias das pessoas que vivem nesses territórios que vivem sob ocupação russa. Continuamos a negociar com os governos russo e ucraniano as condições de acesso para prestar apoio humanitário a essas pessoas.
Vem aí o inverno também para as pessoas que procuraram refúgio em países limítrofes. Está também preocupado com essa situação?
Absolutamente. As preocupações com a energia são comuns a todos os países. Não podemos descartar a hipótese de cortes no abastecimento energético, a começar no interior da Ucrânia onde temos uma grande operação em curso para distribuição de caldeiras e aquecedores em instalações coletivas. Muitas pessoas que perderam a casa estão hoje instaladas em antigos sanatórios e outras unidades que estamos a apetrechar de aquecimento que depende dessa coisa simples que é o abastecimento de gás e eletricidade. Infelizmente temos assistido a alguns ataques nas últimas semanas dirigidos exatamente a centrais de produção e distribuição de energia na Ucrânia. Isso significa que muita da nossa operação que estamos a montar exige que haja um sistema elétrico capaz de responder às necessidades de aquecimento.