O meu desejo cristão para 2018? Que a igreja como um todo siga sem resistências separatistas a “Amoris Laetitia” (“Alegria do Amor”) do Papa Francisco sobre a situação dos divorciados recasados; é tempo de diversos grupos dentro da igreja pararem com uma espécie de insurgência alegadamente purista e salvadora da verdadeira doutrina.
Na verdade, esta atitude só revela a doença farisaica que olha para a lei com olhos mortos, olhos legalistas de Javert. Ao ler e ouvir a posição destas tribos que se julgam mais papistas do que o Papa, fico sempre com uma estranha impressão: estas pessoas mais depressa perdoariam um assassino do que um divorciado que ousa voltar à igreja para comungar. Se a misericórdia do Senhor pode ser recebida por todos, até pelo violador e pedófilo, porque é que continuam a ostracizar o divorciado? Porque é que continuam a negar os mandamentos da reconciliação e da eucaristia ao divorciado recasado? Onde é que está escrito que o divórcio é único pecado sem acesso ao perdão?
Repare-se que a “Amoris Laetitia” não diz que o divórcio não é um pecado objectivo. Não há ali relativismo moral. Sim, o divórcio é sempre um pecado; é a consequência trágica de uma série de pecados cometidos pelos dois conjugues. E o pecado maior talvez seja a presunção de pensar que a culpa é sempre do outro lado, do ex-marido ou ex-mulher. Portanto, aqueles que dizem que o Papa Francisco está a despenalizar o divórcio estão a ser desonestos. O ponto é outro, o ponto é dar o mandamento da reconciliação ao divorciado recasado que procura a redenção.
O divórcio não pode ser um pecado à parte, não pode ser um pecado diferente dos outros pecados, não pode ser colocado numa torre inacessível à misericórdia de Deus.
O verbo cristão por excelência é “recomeçar”. Através do arrependimento e do perdão, Cristo permite recomeçar. O divorciado não é aqui um pária, também tem direito ao recomeço. O divorciado crente e recasado não pode permanecer neste limbo entre os crentes sem macula, ó santos!, e os ateus, como se fosse uma espécie de hermafrodita teológico sem identidade ou poiso.
Quer isto dizer que todos os divorciados recasados devem ter direito ao recomeço? Não. Aqueles que argumentam que o Papa Francisco transforma a Igreja num albergue espanhol à vontade do freguês estão a ser desonestos. “Alegria do Amor” diz que o regresso à igreja do divorciado recasado é um processo lento que tem de ser acompanhado por um padre. É esse pastor que gere a situação. Isto não tira poder à Igreja. Pelo contrário: dá poder e vida a cada um dos seus pastores, que não se podem limitar a aplicar a lei de forma cega e mecânica; têm de exercer o seu juízo moral ancorado na misericórdia do evangelho numa lógica de caso a caso.
Um padre não pode ser um mero burocrata de um direito canónico aplicado de forma cega a toda a gente; um padre tem de ser um intérprete vivo desse direito, até porque o direito canónico não é a voz de Deus da mesma forma que o direito positivo (de um estado) não é a voz do direito natural. Por outras palavras, é preciso ter em atenção que o termo “situação irregular” esconde muitas injustiças cometidas contra cristãos que querem regressar ou ingressar numa igreja que lhes vira as costas em nome da norma farisaica. O legalismo farisaico afasta milhares, se não milhões, da igreja.
Como escreveu Miguel Almeida sj. na revista “Brotéria”, está aqui em jogo um duplo discernimento. Por um lado, o divorciado recasado deve passar por um exame de consciência sobre o seu passado, sobre o seu compromisso com o evangelho e com a ideia de família. Por outro lado, o padre que o acompanha tem de vigiar e confirmar (ou infirmar) este exame interno. Ora, se este exame de consciência for honesto, se a pessoa quiser de facto crescer na caridade, se o padre virar o polegar para cima, então não há qualquer razão para a igreja continuar a recusar os sacramentos ao recasado. É isso que se espera de uma igreja dura com o pecado mas misericordiosa com o pecador.