Em entrevista à Renascença, Rui Tavares defende ainda que o Parlamento não deve ficar fora das negociações do acordo de rendimentos, para discutir, por exemplo, "a questão do salário mínimo, a questão não só dos rendimentos como dos rendimentos do trabalho em geral e da protecção social".
A dias da entrega do Orçamento do Estado pelo Governo, também tem a mesma pressa que o Presidente da República em saber o cenário macroeconómico?
A resposta é sim. É que é muito importante que o Governo saia a público, seja claro em relação àquilo que espera para o próximo ano, seja em relação às más notícias, seja às boas notícias. Ou seja, tanto em relação aos riscos de uma recessão com os quais o Governo pode estar a contar para, de certa forma, acertar as suas contas em relação à inflação e em relação à meta que tem e que continua a afirmar que mantém, apesar do contexto económico de subida do peso dos salários na proporção do PIB e que seja a mesma da média da União Europeia, com as tendências como elas estão.
Eu não vejo muito bem como é que o Governo diz que mantém essa meta sem estar neste momento a tomar ações para a subida dos salários que se vejam, pelo menos naqueles que pode controlar, como os salários da função pública e o salário mínimo, sem estar à espera, provavelmente de uma recessão que diminui o bolo geral do PIB.
O Governo esteve à espera de ver durante estas semanas como é que os dados económicos evoluíam?
Eu creio que é uma coisa que já vem de trás. No Orçamento do Estado para 2022, que, como se sabe, foi aprovado já no decorrer do próprio ano de 2022, o Conselho das Finanças Públicas foi à Assembleia da República e a uma pergunta que lhes fiz disseram que o risco de uma recessão para 2023 não estava de todo afastado.
Nenhum dos conselheiros tinha optado por prever uma recessão para 2023, mas nenhum afastava esse risco. Mas também temos o lado das boas notícias. Que é que, afinal, o Governo tem um excedente muito maior do que aquilo que se podia estar à espera agora, portanto, durante o primeiro semestre.
Mas são dados anteriores à tomada de medidas contra a inflação. São dados de agosto...
Exato. E, portanto, provavelmente são os dados de que o Governo estava à espera para depois poder avançar com este pacote. Ora, pergunto eu: não teria sido muito melhor vir a público e ser claro em relação a todas estas macro tendências que o governo está a vigiar, como a execução orçamental, como os riscos de défice e dizer já claramente às pessoas o que é que têm disponível, para quando e de que forma? Portanto, eu acho que para responder à primeira pergunta, o senhor Presidente da República tem toda a razão em que é preciso ser muito mais claro na estratégia orçamental.
O Governo atira muitas vezes para o diálogo com os parceiros sociais aquilo que não tem vontade de trazer a debate político na Assembleia da República.
Temos em curso negociações para o acordo de rendimentos e temos esta polémica em torno das declarações do ministro da Economia sobre o IRC. Também acha, como alguns socialistas, que Costa Silva falou cedo demais sobre esta matéria?
Eu creio que o que é essencial em relação à concertação social e em relação a um acordo sobre rendimentos é que o Parlamento não seja excluído desse diálogo. Ou seja, o Governo atira muitas vezes para o diálogo com os parceiros sociais aquilo que não tem vontade de trazer a debate político na Assembleia da República. A questão do salário mínimo, por um lado, a questão não só dos rendimentos como dos rendimentos do trabalho em geral e da proteção social.
E esta questão fiscal, o IRC e o IRS, o que é que é possível fazer?
O Governo neste momento tem capacidade, não só porque tem um excedente de que já falámos. Esse excedente tem a ver com o efeito que a própria inflação tem nos impostos indiretos, em particular no IVA. E, portanto, o Estado está a arrecadar mais do que aquilo que estava a contar. Existe toda a questão da execução do PRR, que também há dinheiro pronto a entrar na economia e que pode ajudar.
Além disso, o Governo pode dirigir os seus esforços de maneira a fazer duas coisas. Por um lado, a mitigação da inflação. Ou seja, para aqueles que sofrem mais, em particular as categorias de mais baixo rendimento, classe média e média baixa e baixa, poder ajudar as pessoas a enfrentar a subida do custo vida. E depois, com medidas genéricas: os serviços públicos universais, transportes, creches e saúde também vão poder, basicamente, tornar os próprios serviços públicos muito mais baratos ou até gratuitos durante esta fase inflacionária, porque aí é fazer o combate à inflação propriamente dita são medidas anti-inflacionárias.
São propostas que o Livre irá apresentar no âmbito do Orçamento do Estado?
E em alguns casos já apresentou. Mas apresentaremos outras. Apresentaremos uma proposta, por exemplo, para a criação de um passe ferroviário nacional. É uma medida que funcionou durante algum tempo na Alemanha, em que se pagava nove euros por hora durante este verão e acaba agora. Nove meses para poder andar em todas as ferrovias de toda a República Federal Alemã.
Não será provavelmente possível em Portugal ter um passe ferroviário nacional tão barato, mas é muito importante para quem paga 80 euros de passe todos os meses para poder vir de casa para o trabalho, para poder visitar a família no fim de semana, os professores da escola secundária ou agora os recém estudantes universitários, se nós pudermos fazer um teste também durante alguns meses, ter um passe ferroviário nacional e se diminuir custos, portanto, aí já não é só mitigar a inflação e combater a inflação.
E para isso também há, além daquelas, digamos, alavancas de que eu falava. Um excedente que é preciso gerir de forma cautelosa. Evidentemente, o dinheiro do PRR que é preciso executar e a possibilidade que o Livre também pôs em cima da mesa com outros partidos de taxar os lucros excessivos e inesperados, injustificados, que não vêm de nenhuma espécie de inovação, mas vêm simplesmente do atual contexto político e que já servem para muita coisa.
Há espaço para baixar impostos e há espaço para tornar os impostos mais progressivos. É uma questão de os impostos serem pagos por quem os pode pagar e quem tem que participar mais, num esforço que é coletivo agora em período de guerra e de inflação.
O Bloco de Esquerda, recentemente, também veio com a proposta de taxar os mesmos lucros inesperados da banca. Vem ao encontro do que o Livre também quer?
Há espaço para baixar impostos e há espaço para tornar os impostos mais progressivos. E, acima de tudo, é o mais importante. Nós precisamos de uma reforma fiscal, porque, na verdade, não é só uma questão de menos impostos ou mais impostos, é uma questão de os impostos serem pagos por quem os pode pagar e quem tem que participar mais, num esforço que é coletivo agora em período de guerra e de inflação.
Estamos a falar e vamos falar dos impostos excessivos, mas evidentemente que com um Estado que vai buscar a maior parte da sua arrecadação a IVA e a IRS, no fundo são os trabalhadores e os consumidores, ou seja, as mesmas pessoas quando trabalham, quando recebem e depois quando fazem as suas compras que estão a pagar duas vezes à máquina do Estado. É possível aliviar as famílias da classe média e poder, apesar de tudo, ir buscar mais recursos, por exemplo, através de uma taxa sobre lucros extraordinários que nos permitem fazer os tais serviços públicos mais baratos que nós precisamos agora.
Mexidas no IRC é menos importante ou menos prioritário para o Livre?
No IRC também há uma questão de progressividade. Nós vemos empresas muito grandes que tiveram os tais lucros excessivos e que não estão a pagar e depois devemos a empresas pequenas e médias empresas que têm na verdade uma taxa efetiva que anda à volta dos 25%, 28%, quando grandes empresas pagam 15 a 17%. E assim, aquilo que nós podemos fazer é, evidentemente, tentar aliviar o peso excessivo sobre pequenas e médias empresas que é 90% do nosso tecido empresarial, mas também ao mesmo tempo inovar, criando uma taxa ou benefícios fiscais ou uma arrecadação, uma parte do IRC que possa consignar uma parte dos impostos sobre a atividade económica a utilizações que são elas próprias potenciadores do crescimento económico.
O Livre irá propor uma novo modelo de financiamento do Ensino Superior assente num tripé que tem a ver com o que vem da atividade económica poder ir para um fundo estratégico do Ensino Superior, portanto, que permita fazer aqueles investimentos nos laboratórios, nas bibliotecas, por outro no Estado, que deve assegurar as despesas correntes e outro que pode ser assente na criação de um fundo de apoio ao estudante do Ensino Superior, que pode, por exemplo, ser financiado pelos impostos daqueles que tenham beneficiado o Ensino Superior e que tenham rendimentos muito acima da média da média e, portanto, do primeiro ciclo de rendimentos.
Por exemplo, há muita gente que, provavelmente com muito bom gosto, daria 0,5% dos seus impostos para financiar as bolsas, as residências, os refeitórios dos novos estudantes do Ensino Superior.
Acho que as pessoas não perdoariam se, numa situação como esta, todo o foco estivesse no défice e na dívida e não estivesse nas pessoas.
Já são algumas propostas. Tem falado com o PS, há algum tipo de negociação com o Partido Socialista sobre as propostas do Livre para o Orçamento do Estado?
Não. O contador parte do zero para 2023. A partir de 10 de Outubro, um pouco antes, quando tivermos a nossa audição de direito de oposição, que todos os que todos os partidos têm para conhecer as linhas gerais do orçamento e dos números do Governo e estamos à espera de ver da parte do Governo, por um lado, o reconhecimento de que falharam o alvo por baixo no orçamento anterior, que falharam, que apresentaram este pacote de medidas que de certa forma é quase um orçamento retificativo e, portanto, que não devem fazê-lo para 2023, seria um grave erro.
A situação está ainda mais dramática e, portanto, é preciso ir mais longe no tipo de apoio que se pode dar às pessoas. Acho que as pessoas não perdoariam se, numa situação como esta, todo o foco estivesse no défice e na dívida e não estivesse nas pessoas. E, portanto, é preciso equilibrar esses dois interesses do Estado. Claro que nós queremos finanças sustentáveis, mas, por outro lado, nunca teremos finanças sustentáveis se esta crise for muito mais dura do que aquilo que precisa de ser e, portanto, perderemos gente, as pessoas emigrarão e continuaremos numa situação de fragilidade do nosso próprio modelo económico.
Por outro lado, nós queremos que o Governo demonstre ainda mais capacidade de diálogo neste ano, porque o ano passado ainda estávamos muito sob o efeito de umas eleições nos quais prometeram que uma maioria absoluta não ia ser diferente de uma maioria relativa e queriam dialogar e negociar mesmo e este ano já se podem ter esquecido isso. É muito importante que não se esqueçam disso. O alerta que nós temos, por exemplo, que veio de Itália ou que veio da Suécia, outros países europeus, é que quando a política parlamentar não funciona, o que acontece é que os populistas se aproveitam. Portanto, o PS tem neste momento uma responsabilidade enorme.
Já no início da Legislatura?
Tem que ser sempre. O Governo tem de demonstrar que o facto de ter uma maioria absoluta não o impede, antes pelo contrário, deveria incitar a ter negociações formais com os partidos que estão na Assembleia da República para ouvir a sério quais são as medidas que eles têm, para aprovar um bom número das medidas que os partidos que não fazem parte da base de sustentação do governo e para fazer disso um diálogo sistemático.
O Governo tem de demonstrar que o facto de ter uma maioria absoluta não o impede, antes pelo contrário, deveria incitar a ter negociações formais com os partidos que estão na Assembleia da República
O ano passado tivemos algum diálogo com alguns ministérios. Foi preciso pedir muito. Foi preciso insistir com o Primeiro-Ministro. Foi preciso depois de uma ida da Belém para uma audiência com o senhor Presidente da República, dizer à imprensa que não tínhamos recebido nenhum convite para nenhuma reunião. Este ano não deve ser assim, até porque no ano passado nos disseram este é um orçamento de transição em boa medida é o que vem de trás, que não foi implementado porque o Parlamento caiu, porque houve novas eleições para o ano é que é. Então, estamos à espera, este ano é que é.
E o mesmo diálogo é necessário, por exemplo, para uma reforma da Segurança Social, que já se percebeu que o Governo está a tentar atrasar o mais possível. Mas esse mesmo diálogo para evitar tensões sociais é exigível? O regresso da centralidade do Parlamento.
Pois, esperemos que se regresse à centralidade do Parlamento. Mas isso depende em particular do partido que tem maioria absoluta e nós só estaremos cá para vigiar e para denunciar se não acontecer. Nós propusemos em relação a Segurança Social uma forma de fazer as coisas que nos parece que era muito mais fidedigna na relação com os portugueses, em particular com os pensionistas.
A prestação extraordinária, portanto, que é transferida agora no mês de Outubro para os pensionistas, faça parte da base de incidência para o cálculo das pensões futuras, ou seja, garantir às pessoas em letra de lei que isto não significa que vão perder em 2023, 2024 e por aí adiante. E ao mesmo tempo, uma vez que toda a gente está também preocupada com a sustentabilidade da Segurança Social e quer assegurá-la, o Governo até ao primeiro trimestre do próximo ano devia apresentar um relatório sobre as novas fontes de financiamento da Segurança Social. O Governo já está em funções há sete anos e ainda não apresentou.
Que novas fontes de financiamento podem ser essas? Por exemplo, das empresas que têm capitalizações muito altas, que têm lucros muito altos, mas que têm uma uma força de trabalho relativamente reduzida. Empresas que são muito intensivas em inteligência artificial, muito intensivas em robótica, muito intensivas em software.
É algo que vai exigir nas próximas semanas, até no âmbito do Orçamento do Estado? Nos próximos meses?
Sim, nós podemos apresentar uma proposta de alteração orçamental para exigir isso ao Governo, que até tem uma comissão a trabalhar sobre este assunto, é um assunto que está em cima da mesa em todo o mundo. A Segurança Social, tal como ela existia, era fundada na ideia de que o patrão paga uma parte, o trabalhador paga outra parte e depois há ali um bolo para as situações de emergência e as de velhice e de doença e por aí fora. Mas era assente num modelo de trabalho que nós tivemos durante o século XX, daí que a maior parte do trabalho era trabalho humano. Então nós podemos tranquilizar os pensionistas agora e podemos tranquilizá-los também para as próximas.
Mudando a fórmula de cálculo das pensões ou não se deve mexer nessa fórmula?
Eu creio que a fórmula que está e representa um consenso político e social, que é uma promessa, um contrato social entre o Estado e os pensionistas e, portanto, evidentemente que toda a gente tem duas preocupações. Uma é não perder rendimento já ou nos próximos anos e outra que a Segurança Social seja sustentável. Não devemos fazer disto um bicho de sete cabeças.
É possível manter esses dois objetivos a serem prosseguidos. São duas missões que nós conseguimos cumprir ao mesmo tempo. O que não dá é, por facilitismo, tentar fazer passar uma reforma da Segurança Social pela porta do cavalo, disfarçado de uma benesse a dar agora. Ou seja, o Governo não pode dizer que esta lei servia muito bem quando a inflação voava baixinho e agora, que a inflação está a voar alto já não pode acompanhar. Esta lei era suposto ser para todas as estações.