A febre da raspadinha é um fenómeno que tem cada vez mais adeptos. Desde 2011, o número de apostas neste tipo de jogo subiu seis vezes, e, só no ano passado, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa facturou 700 milhões de euros com a chamada lotaria instantânea.
Há mais de 20 tipos diferentes de raspadinhas e os preços vão de um a dez euros. A probabilidade de sair prémio é maior do que, por exemplo, no Euromilhões, mas não deixa de ser ser reduzida.
A baixa probabilidade, contudo, não demove os jogadores. A atracção de poder receber um prémio na hora é apelativa, diz Gabriel Silva, responsável do balcão da Casa da Sorte no Rossio, em Lisboa. “É o dinheiro rápido. Com o Euromilhões tem de ser estar à espera. Com o Totobola e Totoloto a mesma coisa. As lotarias têm aquele ‘timing’ que temos de esperar. Com a raspadinha não, é instantâneo", relata.
Nesta casa bem no centro da capital, entram pessoas de todas as idades, mas a maioria que se vê são clientes com mais de 50 anos. De moeda na mão, pronta a descobrir se tem prémio, Rosa, de 62 anos, explica que joga descomprometidamente e que, se perder, também não se aflige, porque “sempre ajuda os miúdos” da Santa Casa.
Aquilo que a atrai é a “sensação” de estar a raspar e o suspense de sair prémio. Admite que é uma “ilusão” e que algumas pessoas estão mais vulneráveis que outras. “Vive mais na ilusão quem não pode do que as pessoas a quem não faz falta aqueles cinco ou 10 euros.” Conta que já viu casos de quem gasta o que tem e o que não tem em apostas: “Muitas gastam quase o ordenado que recebem com a ilusão de ganhar mais”.
É o caso de Luís, de 54 anos, que confessa “estar um bocado agarrado” à raspadinha, que “é viciante, como qualquer tipo de jogo”. Já ganhou mil euros numa aposta, mas diz que não compensa para o número de vezes que já jogou. Quando compra, gasta 20 ou 30 euros de uma vez. O que o atrai é o facto de ser “pago logo na hora" e "depois é querer investir determinado dinheiro e ganhar o dobro ou o triplo”. E nem é a ideia do prémio em si que o agarra, é mesmo o prazer de jogar. Luís chega a gastar 300 euros por mês em raspadinhas.
No site Poupar Melhor, o engenheiro António Sousa faz um cálculo das probabilidades para a raspadinha que promete o maior prémio, o Super Pé-de-Meia. Saem 4,004 milhões de raspadinhas e cada uma delas custa cinco euros. Destas, há três raspadinhas que dão dois mil euros por mês durante 12 anos.
“Imagine o Estádio da Luz, que cheio leva 65.647 pessoas. Imagine que ele vai estar cheio durante 61 jogos consecutivos e que, durante esses 61 jogos, três das raspadinhas com o prémio grande vão ser entregues a afortunados espectadores. Imagine que vai a apenas um desses jogos: veja assim qual é a probabilidade de receber o prémio com os cinco euros que joga”, exemplifica o Poupar Melhor.
Na Casa da Sorte, António José, de 54 anos, vem acompanhar a esposa que vai à raspadinha. E não tem dúvidas que há aliciantes maiores até que nas outras lotarias. “No Euromilhões jogava-se e esperava-se uma semana ou quatro dias à espera de sair o sorteio, ora este é um vício. É como o café, como o tabaco”, diz. Para António José, “é um jogo de atrofiar a sociedade”.
Factores de risco que criam dependência
O psicólogo e especialista em dependências de jogo Pedro Hubert conta que, enquanto há uns anos não se via, já começa a aparecer casos clínicos de pessoas com adição exclusivamente à raspadinha. Destaca três factores que se conjugam quando surge uma dependência.
“No caso da raspadinha como também no álcool e nas drogas, há três factores de risco - há os factores pessoais e individuais: a pessoa tem de ter uma predisposição para o jogo, para a impulsividade, a dificuldade em controlar os seus impulsos e a sua vontade”, começa por explicar.
Em segundo lugar, “há os factores estruturais, e é aqui que entram os diversos tipos de jogo. Um jogo é tanto mais aditivo quanto a frequência do jogo é elevada, a resposta ao prémio é rápida, o montante do prémio é atractivo. A raspadinha tem alguns destes atractivos.
Finalmente, explica Pedro Hubert, “há os factores situacionais, a crise, a legislação, a cultura, a moda, o marketing”. “Quando estes três factores se juntam - o meio ambiente, o tipo de jogo e a pessoa que tem problemas - é que podem provocar problemas.” Mas é uma minoria de pessoas: “A maior parte das pessoas, 90% ou mais, não tem qualquer tipo de problema com o jogo e joga por puro divertimento. Depois, entramos na faixa das pessoas que já querem ganhar dinheiro, que já querem sentir a adrenalina, que sentem que a ali está a solução para os seus males todos e que o dinheiro vai resolver tudo”, explica o psicólogo.
O que não quer dizer que não haja riscos. Como com outro tipo de dependências, jogos como a raspadinha podem abrir a porta a outros tipos de consumo. “Um jovem que comece desde os 14, 15 anos a jogar à raspadinha. Apesar de ser proibido, lá consegue. Não está bem preparado ainda para aquilo. Começa a sentir-se cada vez mais empolgado. Daí a ficar com o 'bichinho' atractivo do jogo e depois passar, por exemplo, para as apostas desportivas ou para o poker, ou para outras coisas, é de facto uma possibilidade”, adverte Pedro Hubert.
O psicólogo deixa ainda um alerta: “Esta minoria de pessoas tem de ser protegida em função da prevenção. Deve-se avisar como se deve jogar, como não se deve jogar e os próprios organismos que promovem o jogo devem ter uma linha de ajuda.”
No site dos jogos da Santa Casa, por exemplo, existe uma linha de atendimento para apostadores – 808 203 377 – e um conjunto de recomendações para o jogo responsável. Alguns conselhos são: antes de começar a jogar, fixe o montante que pretende gastar, não peça dinheiro emprestado, controle o montante gasto e tenha atenção que o jogo depende apenas da sorte e não existem fórmulas que permitem ganhar.