Donald Trump reúne-se esta sexta-feira com os responsáveis das agências secretas americanas para o primeiro "briefing" sobre "intelligence" desde que foi eleito Presidente dos Estados Unidos.
O encontro decorrerá, seguramente, em clima de tensão porque o futuro inquilino da Casa Branca manifestou por diversas vezes desconfiança em relação aos serviços de espionagem, pondo em xeque a sua competência, e quebrou uma tradição, prescindindo dos "briefings" frequentes após a eleição.
Não há memória de um futuro Presidente ter estado tanto tempo sem "briefings" das secretas. Tradicionalmente, o Presidente eleito reúne com as agências com muita frequência no período de transição. Barack Obama, para dar apenas o último exemplo, teve 18 reuniões com responsáveis das secretas americanas entre a eleição em Novembro e a tomada de posse em Janeiro.
Mas Trump, quando interrogado sobre a razão por que não fazia os habituais "briefings", respondeu que era “inteligente” e que “não precisava de ouvir a mesma coisa, com as mesmas palavras todos os dias”. Uma decisão coerente com várias declarações que fez durante a campanha e após a eleição revelando desprezo pelo trabalho da espionagem americana.
O assunto que o colocou em rota de colisão com a "‘intelligence" foi o da intrusão da Rússia na campanha eleitoral. Trump pôs sistematicamente em dúvida que Moscovo tenha sido responsável pela pirataria informática aos computadores do Partido Democrático e pelas fugas de informação subsequentes visando a campanha de Hillary Clinton.
Contrariando as revelações das agências de espionagem, que a um mês das eleições garantiram ter provas de que o “hacking” tinha sido obra russa, Trump insistiu em dizer que “tanto podia ter sido a Rússia, como a China, como um tipo em Nova Jérsia”. E já depois de eleito, perante um relatório da CIA a assegurar que a operação tinha sido feita com a intenção deliberada de prejudicar a candidatura de Clinton, Trump divulgou um comunicado a dizer que quem o afirmava eram “os mesmos tipos que disseram que havia armas de destruição maciça no Iraque”.
Consenso bipartidário
Todo este criticismo e desconfiança em relação às secretas pairou esta quinta-feira numa sala do Senado, em Washington, onde responsáveis das agências secretas depuseram perante o Comité das Forças Armadas.
Numa sessão que durou mais de duas horas, abundaram os elogios ao trabalho das agências. Senadores de ambos os partidos louvaram as conclusões sobre o papel da Rússia na campanha eleitoral, criticando pelo caminho a atitude de Trump em relação ao assunto. E nem sequer foram os democratas os mais agressivos nesta tarefa.
Ninguém pôs em dúvida os resultados da investigação das agências, procurando antes apurar a dimensão da actual ameaça russa em termos de ciberespionagem e a capacidade de resposta dos EUA perante ela. E neste aspecto aquilo que os responsáveis disseram não terá deixado nenhum senador tranquilo.
Quer James Clapper, coordenador das 17 agências de "intelligence", quer Mike Rogers, director da National Security Agency (NSA), explicaram que a interferência russa na campanha presidencial americana foi “multifacetada” e assentou em três vertentes principais: pirataria informática ao Partido Democrático e respectiva divulgação de emails, através do site wikileaks de Julian Assange; manipulação hábil e eficaz das redes sociais através de propaganda; disseminação de notícias falsas.
Todas estas actividades foram orientadas para causar danos à campanha de Hillary Clinton e foram ordenadas pelo Kremlin. Disso não têm dúvidas os responsáveis citados. O que não dão é o passo seguinte, isto é, não arriscam afirmar que tipo de influência terão tido no comportamento do eleitorado. Isso é assunto para analistas políticos ou sociólogos.
O relatório com todas as provas da operação russa será entregue esta sexta-feira a Donald Trump e ao presidente Obama e na próxima semana será divulgada ao público americano uma versão não-classificada. Nela deverá constar, porém, um conjunto de dados suficientemente vasto para não deixar dúvidas sobre a origem da operação, os seus contornos e os seus motivos.
Maior adversário
James Clapper, o “patrão” de todas as secretas que há cerca de 40 anos trabalha nesta área, salientou que se tratou de “uma das campanhas mais agressivas de sempre” e considerou a Rússia o maior adversário dos EUA nesta área. “Eles têm capacidade e têm intenção” naquilo que fazem, disse.
Depois deixou os senadores talvez ainda mais inquietos quando explicou que responder a um ciberataque com outro ciberataque pode não ser a forma mais inteligente de retaliar. As ciberameaças não podem evitar-se num país que tem telhados de vidro como os EUA, alertou. Isto é, com uma infra-estrutura informática tão vasta e tão exposta, os EUA serão sempre vulneráveis a ataques cibernéticos porque retaliar no mesmo terreno não funciona como dissuasor.
Clapper exemplificou com a doutrina da destruição mútua assegurada (MAD, no acrónimo inglês) que, no tempo da guerra fria, funcionou como dissuasor eficaz porque se alguma das superpotências lançasse um ataque nuclear sabia que seria também destruída.
No mundo dos ciberataques é diferente, o inimigo estará sempre em condições de retaliar e a “guerra” pode continuar indefinidamente. Daí que Clapper seja um forte adepto de sanções à Rússia por as considerar mais eficazes do que responder com novos ciberataques. Este será provavelmente outro ponto de discórdia com Donald Trump, que se preparará para levantar as sanções em vigor como forma de melhorar as relações com Moscovo.
A tónica das intervenções dos senadores denotava alguma apreensão pela aparente incapacidade dos EUA em se defender e responder eficazmente à ofensiva do Kremlin. “Até agora temos lançado seixos contra a Rússia, quando precisamos de lançar rochedos”, alertou Lindsey Graham, um experiente senador republicano que se recusou a apoiar Trump na campanha eleitoral.
Uma apreensão que está generalizada e que não se limita à questão dos ciberataques. A guerra da propaganda também foi dada como exemplo da agressividade russa nos tempos mais recentes. Enquanto os responsáveis da "intelligence" garantiam que a ofensiva de Moscovo avança neste momento sobretudo na Europa, um dos senadores garantiu que o Kremlin está a comprar estações de televisão no Velho Continente e está a financiar um dos candidatos às eleições presidenciais francesas – uma referência a Marine Le Pen, que não nomeou.
Tudo isto no quadro de uma ofensiva no hemisfério ocidental que passa por maior cooperação militar, venda de armas e negociações para a instalação de bases de rastreio ou para operações aéreas em países com quem mantém um relacionamento amigável como Cuba, Nicarágua, Venezuela ou Equador.
Daí que Mike Rogers, o director da NSA, conclua que “é preciso fazer algo verdadeiramente diferente” para contrariar a agressividade russa. Advoga maior rapidez no combate aos ciberataques, enquanto Clapper propõe mais acção na contra-propaganda, nomeadamente através da USIA, uma agência de promoção dos valores americanos no mundo. “Precisamos de uma USIA com esteróides”, ironizou.
Estas são as conclusões e as perspectivas que a comunidade de espionagem americana leva esta sexta-feira a Donald Trump, um presidente eleito que quer melhorar o relacionamento com a Rússia, que elogiou Vladimir Putin várias vezes, e que criticou e menosprezou o trabalho das secretas em relação à interferência do Kremlin nas eleições de 8 de Novembro.
“Há uma diferença entre cepticismo e depreciação”, anotou no Senado James Clapper quando interrogado sobre as críticas de Trump ao trabalho das agências.
A desconfiança está, pois, instalada entre Trump e a intelligence. No encontro de hoje a tensão é inevitável.