Um mundo sem adultos, no qual somos oprimidos por uma espécie de presente sem fim, tomou conta da maneira como experimentamos as coisas. Usar gravata tornou-se uma citação do tempo em que se usavam gravatas. Estamos noutra. A cultura oficial é outra.
Isto ocorreu-me quando ajudava o meu filho mais velho com os trabalhos de Educação Musical. Poder-se-ia dizer ingénuo da minha parte, mas estava à espera daquela modéstia e gravidade que a palavra “academia” convoca, em vez da berraria fluorescente que acabei por encontrar: “Play”, o manual da disciplina, parece estar mais perto de um painel publicitário do que de um auxiliar de estudo escolar.
Começa com o título e depois com o índice, colonizados pelo proverbial uso e abuso de palavras e expressões em inglês. Se é para afunilar a língua portuguesa, façamo-lo cedo e em estilo: “Play”, “Play-Along” (uma actividade que bem se poderia chamar “Cantarolar”), “Flute Master”, isto é, “Mestre da Flauta” (o nome de um jogo para aprender a tocar flauta), ou o intraduzível “Play Composer” (um método de composição musical). Depois, as ilustrações 3D de cores garridas, para as quais ainda ninguém ensaiou uma resposta ao porquê de terem proliferado por todo o imaginário infantil na última década e meia. Finalmente o triunfo da coloquialidade no tu-cá-tu-lá escolhido para interpelar os alunos.
Numa primeira impressão não se distingue muito dos outros títulos de apoio ao ensino, inserido num padrão que parece ter feito escola. Ao folhear com maior atenção, contudo, damos conta do método: pequenas biografias e uma ou outra canção de uma selecção de artistas e bandas de música ligeira, serve de base à aprendizagem. Os clássicos estão lá, é certo: em 44 nomes, contei 10; e a música tradicional também tem o seu espaço, conquanto pequeno em proporção. Não me confundam, embora se possa falar sobre isso, não se trata de uma questão de gosto; para além do mais, como praticante de música pop que sou, esperar-se-ia de mim outra parcimónia. Mas o ponto é civilizacional. É para ensinar o quê e como?
Não cabe a nenhum Ministério ou organismo oficial absorver para si os representantes da cultura popular que considera adequados. Muito menos a esses artistas deixarem-se capturar. Se, numa tentativa de aggiornamento que lembra o tio em crise de meia-idade, com o qual os miúdos se cruzam com desconforto na noite, esforçando-se para não rir da orelha furada no mês passado, roubamos dos mais novos os emblemas da cultura juvenil que os poderiam representar, sobra o quê? Desqualificámos o exército, fazemos pouco do escutismo, dispensamos a Igreja. Vamos minando todas as instituições sociais e de solidariedade que permitem algum tipo de afiliação. Ao avançar para o território da cultura pop, sobra o futebol como repositório da necessidade de lealdades tribais que temos imanentes.
“And now for something completely different”?: Nirvana e White Stripes no manual de música. A fazer o quê? Se tivesse a idade dos miúdos que têm de levar com isto, nunca, em tempo algum, me interessaria por Nirvana ou White Stripes. Nenhum miúdo quer gostar do que os adultos aprovam. É preciso quem desaprove. Um adulto que entre na sala e coloque as coisas no lugar: são vozes, que pela sua própria natureza transgressora seriam proibidas pelos nossos pais. Mas este é um mundo sem pais e “é proibido proibir”.
Fizeram-nos engolir o seguinte dogma: a produção artística deve causar dano, questionar, ferir susceptibilidades, ser o cavalo de batalha contra o apetite burguês. O desenlace dessa tensão está à vista. Numa não tão imprevisível reviravolta, a transgressão tornou-se um enfado. A irreverência passou a constituir a norma e os papéis entre classe artística e sistema ficaram adulterados. Se estas bandas e artistas cumpriam o papel de “sticking up to the man”, transmutaram-se agora no alvo contra quem um dia cantavam.
Quando andava no 5.º ano, o Cereja (alcunha para Sérgio), colega dois ou três anos mais velho por ter reprovado várias vezes e dono de uma generosa colecção de frases de algibeira, costumava dizer: “Ó [não sei quem], o teu professor, foi o meu pior aluno!”.
Em 1995, certamente, o Sérgio não estaria a profetizar sobre o estado das coisas em 2024. O que o Sérgio queria era fazer pouco das figuras de autoridade. Porém, para se ser negligente não é preciso ser incompetente, basta abandonar essa regra ultrapassada que nos diz que um adulto se deve comportar como tal.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa. Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.